A SUPRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO HOSPITAL COLÔNIA EM BARBACENA E A APLICABILIDADE DA LEI ANTIMANICOMIAL

A SUPRESSÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO HOSPITAL COLÔNIA EM BARBACENA E A APLICABILIDADE DA LEI ANTIMANICOMIAL

20 de dezembro de 2023 Off Por Scientia et Ratio

THE SUPPRESSION OF HUMAN RIGHTS AT THER HOSPITAL COLÔNIA EM BARBACENA AND THE APPLICABILITY OF THE ANTI-MANICOMIAL LAW

Artigo submetido em 22 de junho de 2023
Artigo aprovado em 15 de julho de 2023
Artigo publicado em 20 de dezembro de 2023

Scientia et Ratio
Volume 3 – Número 4 – Dezembro de 2023
ISSN 2525-8532
Autor:
Ana Stephany Pereira Sula da Silva[1]
André Ricardo Fonsêca da Silva[2]

RESUMO: Historicamente, portadores de transtornos mentais têm sofrido com o descaso governamental e social, tendo os seus direitos individuais, políticos e sociais suprimidos. Este artigo teve como objetivo narrar toda a barbárie que ocorreu no Hospital Colônia em Barbacena, Minas Gerais e toda a falta de dignidade e respeito no que tange aos seus pacientes, vinculados ao total desprezo com os direitos humanos vigentes para todos, analisando ainda a aplicabilidade da Lei 10.216/2001. O presente trabalho foi elaborado com o intuito de propagar a importância de um tratamento humanizado e da dissolução dos manicômios, para que atrocidades como a ocorrida no Hospital Colônia, jamais voltem a acontecer. A metodologia aplicada foi qualitativa, estudo de caso com a técnica de revisão bibliográfica, sendo utilizados documentários, livros e artigos científicos que documentam a situação que foi vivida no Colônia e relacionam aquelas circunstancias ao âmbito jurídico. Desta forma, inicialmente foram apresentados os fatos e, logo após, apontadas políticas mais humanizadas, que nasceram junto com a lei antimanicomial. Foram detalhadas, neste artigo, as mortes em massa, os tipos de tratamentos realizados nos pacientes, a comercialização de seus corpos e a reforma psiquiátrica em 2001. Vale ressaltar que o artigo procurou apontar a perversidade ocorrida dentro daquele hospital, toda a negligência com pessoas que precisavam de cuidados. Por fim, o presente trabalho apontou a falta de dignidade humana vivida pelos internos, que andavam nus, desnutridos e com frio, e como poderia ter sido evitado mais de 60 mil mortes se as medidas implantadas juntamente com a Lei Antimanicomial, apenas em 2001, tivessem sido pensadas alguns anos antes.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica; Luta antimanicomial; Hospital Colônia; Lei 10.216/2001. 

ABSTRACT: Historically, individuals with mental disorders have suffered from governmental and social neglect, with their individual, political, and social rights suppressed. This article aimed to narrate all the atrocities that occurred at the Colônia Hospital in Barbacena, Minas Gerais, and the lack of dignity and respect towards its patients, linked to the total disregard of human rights prevailing for all, analyzing also the applicability of Law 10.216/2001. This work was elaborated with the intention of propagating the importance of a humanized treatment and the dissolution of psychiatric hospitals, so that atrocities like the one that occurred at the Colônia Hospital never happen again. The methodology applied was qualitative, a case study with the technique of bibliographic review, using documentaries, books, and scientific articles that document the situation that was experienced at Colônia Hospital and relate those circumstances to the legal sphere. Thus, initially, the facts were presented and, shortly after, more humanized policies were pointed out, which were born along with the anti-asylum law. In this article, mass deaths, types of treatments performed on patients, the commercialization of their bodies, and the psychiatric reform in 2001 were detailed. It is worth noting that the article sought to point out the perversity that occurred within that hospital, all the neglect with people who needed care. Finally, this work pointed out the lack of human dignity experienced by the patients who walked naked, malnourished, and cold, and how more than 60,000 deaths could have been avoided if the measures implemented together with the Anti-Asylum Law only in 2001 had been thought of a few years earlier.

Keywords: Psychiatric reform; Anti-asylum fight; Colony Hospital; Law 10.216/2001.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo expor o descaso histórico do governo e da sociedade para com hospitais psiquiátricos e pessoas com transtorno mental, com enfoque no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Através de documentários ricos em entrevistas e imagens do Colônia no ápice do descaso humano, livros e artigos científicos, este artigo ganhou vida e vem no seu desenrolar mostrar a importância da aplicabilidade da lei nº 10.216/2001 para a utilização de novas formas de tratamento humanizadas e ressocializadoras.

As políticas de saúde mental antes da Reforma Psiquiátrica em 2001 tinham como foco técnicas de tratamentos degradantes que menosprezavam qualquer direito individual, social ou político do interno, rompendo com os princípios mais básicos dos direitos humanos.  O “holocausto brasileiro”, vivenciado no Hospital Colônia, matou mais de sessenta mil pessoas nos 80 anos em que perdurou, chegando a contabilizar em torno de 100 mortes em um único inverno.

O Hospital Colônia, recebia para tratamento não só pessoas com transtornos mentais, mas também, indigentes, filhos rebeldes, mulheres independentes, entre outras minorias da época. Excedia a lotação máxima, não possuía comida para todos e a situação vivida pelos pacientes era completamente degradante. Eram tantos óbitos por fome, frio e torturas que as valas do cemitério do hospital eram comunitárias, alguns corpos eram separados e vendidos a custos altíssimos para universidades de medicina em todo o país.

Em 1978 deu-se início o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, eles lutavam contra os hospitais psiquiátricos e buscavam uma forma de tratamento humanitária para com os pacientes. O movimento ocasionou a abertura destes hospitais a imprensa, que através de registros fotográficos, manchetes em jornais e documentários expuseram as atrocidades vividas pelos internos, causando uma grande comoção social que ocasionou pequenas melhorias nos hospitais psiquiátricos da época, mas que posteriormente levou a criação da lei nº 10.216/2001, que redirecionou o modelo de assistência em saúde mental e ampliou os direitos de pessoas portadoras de transtornos mentais.

Nesse sentido, esta pesquisa é qualitativa, pois não tem por foco a elaboração de dados estatístico. Além de estudo de caso, pois foi estudada a situação do Hospital Colônia em Barbacena e também técnica de revisão bibliográfica, com base em artigos científicos, livros e documentários sobre a história de desumanidade ocorrida neste hospital. 

O artigo está dividido em quatro seções, a primeira aborda o surgimento do Colônia e os objetivos de sua implantação, detalhando o dia a dia dos internos, os tipos de tratamentos utilizados e o descaso com seus corpos ainda em vida e quando já falecidos, a segunda seção aborda os princípios dos direitos humanos e a necessidade de sua preservação, a terceira trata da indiferença dos líderes do Colônia com os direitos humanos e os impactos da luta antimanicomial no país,  e por fim, a quarta seção versa sobre a lei 10.216/2001 e a evolução dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais após sua vigência.

2 “NOS PORÕES DA LOUCURA”

O Hospital Colônia em Barbacena foi fundado em 1903, era a maior das 7 instituições psiquiátricas distribuídas por Minas Gerais, internava muito mais do que sua capacidade permitia, era um ambiente projetado para suportar 200 pessoas e lidava diariamente com mais de 5 mil, o que ocasionava uma precariedade absurda, levando seus pacientes a comerem ratos por fome, passarem tanta sede a ponto de tomarem a própria urina ou a água do esgoto que cortava o pátio do hospital. Eram violados, torturados e espancados, 60 mil vidas foram ceifadas, 70% delas não possuíam diagnóstico de doença mental e todas tiveram sua humanidade roubada.

2.1 OS CORPOS COMO OBJETO

Os “loucos” chegavam ao Hospital Colônia no popularmente conhecido “trem de doido”, eram enviadas pessoas de todo o Brasil amontoadas e com fome. Os recém-chegados eram separados por idade e sexo, tomavam banhos coletivos e os homens tinham suas cabeças raspadas, deixavam nessa triagem seus pertences, seus nomes e sua dignidade, muitos dos pacientes eram rebatizados pelos funcionários, pois recebiam apenas a alcunha “Ignorado de Tal”. Eram distribuídos cada um para seu determinado pavilhão, sendo forçados a juntarem as camas para que nem todos dormissem no chão, devido a superlotação nos dormitórios. Assim que acordavam eram mandados para o pátio, com sol ou chuva, nos dias mais frios se aglomeravam em busca da troca de calor humano, nas noites dormiam empilhados, mas quem ficava em baixo acabava sendo encontrado morto no dia seguinte.

Eram obrigados a acordar as 5 da manhã, mas o pão com manteiga e café era distribuído apenas as 8 horas, possuíam apenas 3 refeições ao dia e nada mais. Só quem entrava na fila pegava comida, aqueles mais debilitados que não dispusessem de condição para chegar até o refeitório ficavam sem alimentos. Por dia, a cozinha do Colônia produzia uma quantidade ínfima de alimentos em relação a quantidade de internos, geralmente engrossando o caldo de feijão com água e farinha de mandioca para ter um melhor rendimento, a única fartura existente era de verduras advindas da horta do hospital, mas a quantidade pequena de funcionários para pica-las levava a perda quase total desses alimentos.

Como uma das formas de tratamento, os internos eram forçados a trabalhar, consertavam vias públicas, plantavam, faziam limpeza de pastos e preparavam doces para venda. Em registros encontrados na instituição, no ano de 1916, quase metade da receita do hospital foi garantida pelo trabalho duro dos pacientes e pela venda dos alimentos que eles plantavam e produziam. Na farmácia do Hospital existiam apenas dois comprimidos disponíveis, Amplictil e Diazepam, ambos utilizados para sedar e acalmar os pacientes de alguma forma. (ARBEX, 2013, p. 65).

Quando o trabalho ou os comprimidos não eram suficientes para manter algum paciente na linha, os tratamentos recorridos eram o de eletrochoque ou a lobotomia. Quanto ao eletrochoque, não existia prescrição médica, a qualquer sinal de desordem os funcionários eram instruídos a aplicá-lo. Era um tratamento empregado indiscriminadamente, muitos morriam, outros ficavam com lesões graves, as descargas elétricas eram tão grandes que a energia elétrica da cidade não suportava. Era uma forma de tortura adotada para contenção e intimidação dos internos, para que a ordem fosse mantida, em nenhum momento sendo posto em consideração a melhora do paciente. Nos casos de realização da lobotomia, eram feitas por médicos e quando os mesmos viam necessidade para fazê-la, porém, na maioria dos casos os doentes que eram levados a cirurgia, quando não morriam, passavam a vegetar.

Os abusos eram constantes, as mulheres grávidas não possuíam direito algum de ficar com seus filhos e não estavam isentas das torturas em caso de desordem. Muitas já chegavam grávidas ao Colônia, outras engravidavam lá dentro vítimas de estupro. Arbex relata em seu livro o caso de duas pacientes do Colônia, Sônia e Maria da Conceição, que para evitar maus tratos e abusos durante a gestação, repeliam a aproximação de qualquer funcionário passando fezes em seus corpos. Essa técnica foi usada por inúmeras internas, mas, após o parto nada podia ser feito e as crianças eram retiradas de suas mães a força, em seguida sendo encaminhadas para abrigos ou adotadas por funcionários do próprio Hospital. (ARBEX, 2013, p. 54).

O Oliveira era um Hospital psiquiátrico que recebia mulheres e indigentes, mas em 1946 passou a receber apenas crianças com deficiências físicas ou mentais, em sua grande maioria rejeitadas pelos pais. Lá as condições vividas pelos seus pequenos internos não se diferenciavam muito da situação do Colônia, existia tortura e abusos constantes, as crianças viviam em situação completamente insalubre. Um dos tratamentos de contenção para crianças violentas era amarra-las no chão durante o dia inteiro, fizesse sol ou chuva. Aquelas que possuíam paralisia cerebral ou eram aleijados ficavam em seus berços sem nenhum contato com o sol ou com uma brisa externa de ar, vegetando até o dia de sua morte.

Um dos depoimentos mais impactantes de uma das crianças que viveu no Oliveira é o de Elza Maria do Carmo, ela havia sido internada por crises de epilepsia, e com apenas nove anos de idade foi vítima de estupro dentro no Hospital. Agora com mais idade, em seu depoimento ela fala:

Eu estava de blusa e saia. Ele tirou minha calcinha e fez maldade comigo. Depois me deixou no mato, ensanguentada, chorando de dor. Fui encontrada pela polícia, que me levou de volta. A dor mais forte, porém, senti no coração. Pensei que fosse morrer ali. Acho que morri um pouco. (ARBEX, 2013, p. 93).

Elza não foi a única vítima de violência dentro no Oliveira, inúmeras outras crianças passaram pelo mesmo que ela, as autoridades e os responsáveis sabiam das situações vividas lá dentro e não interviam, o hospital sendo fechada unicamente porque uma telha caiu na cabeça do diretor. Os pequenos internos foram transferidos para o Colônia, onde cheios de esperança “esperavam resgatar, no endereço, a infância roubada. Logo perceberam que os tempos eram novos, mas o tratamento, não.” (ARBEX, 2013, p. 93).

Como se não fosse o bastante todo o desrespeito e falta de humanidade com os internos ainda em vida, depois de falecidos a coisa não mudava. Inicialmente os corpos eram enterrados em valas coletivas no cemitério, mas, quando os responsáveis pelo hospital notaram que também poderiam lucrar em cima das mortes, mais de 1.856 corpos foram vendidos para universidades de medicina em todo o país. Quando as universidades já possuíam material suficiente e as vendas diminuíram, os corpos passaram a ser dissolvidos em ácido nos pátios no Colônia, junto aos pacientes que caminhavam por ali, tudo para que as ossadas pudessem ser comercializadas. “Nada se perdia, exceto a vida.” (ARBEX, 2013, p. 15).

Alguns funcionários do Colônia que não compactuavam com os absurdos vivenciados dentro da instituição tentaram denunciar os ocorridos, mas ninguém se dispunha a ouvir.

Vinte e oito presidentes do estado de Minas Gerais, interventores federais e governadores revezaram-se no poder desde a criação do Colônia, entre 1903 e 1980. Outros dez diretores comandaram a instituição nesse período […]. Nenhum deles foi capaz de fazer os abusos cessarem. Dentro do hospital, apesar de ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas. (ARBEX, 2013, p. 44-45).

Foram anos de abusos infindáveis, de descaso total com pessoas que precisavam do mínimo de dignidade e nem isso era oferecido a elas. Com a luta antimanicomial a situação começou a melhor de forma demorada e gradativa, mas já era um avanço. Após a criação da Lei 10.216/2001, os sobreviventes do Colônia foram encaminhados para residências terapêuticas, passaram a ter direito a um salário mínimo e bolsa de R$ 240 advindos do programa “De volta pra casa”, tudo isso com objetivo de reabilitar pacientes que haviam passado por períodos longos de privação de liberdade em internações psiquiátricas e reduzir os leitos hospitalares de longa permanência.

  • PRINCÍPIOS DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos são um reconhecimento de que apesar de toda e qualquer diferença, devem ser respeitados e garantidos os direitos básicos da vida humana. Esses direitos são universais, sendo aplicados a todas as pessoas, sem nenhuma distinção. Em 1879, foi criada na França, pós revolução francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que serviu de grande inspiração para a criação da DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos), em 1948.

Divididos em gerações, esses direitos passaram por um grande processo histórico de lutas sem fim para que minorias alcançassem o mínimo de dignidade em seu cotidiano. A primeira geração teve as revoluções liberais do século XVIII como marco, obtendo ampliação em direitos políticos e civis. A segunda geração veio a surgir muito tempo depois, apenas no século XX, com as lutas sociais, econômicas e culturais em busca de igualdade. Na terceira geração vieram os direitos da comunidade, voltados para os povos, nacionalidades e etnias, nesse meio surgindo as lutas antimanicomiais e por fim, vieram a quarta e quinta geração, voltadas para a preservação do meio ambiente e a responsabilidade das gerações atuais quanto a isso.

Para que seja preservada a dignidade humana e haja uma real aplicabilidade da norma torna-se necessária o emprego de seus princípios base, sendo um deles o princípio da historicidade, demonstrando que os direitos humanos vieram a evoluir no decorrer de muitas lutas que marcaram a história, não podendo existir o retrocesso desses direitos já criados, apenas a ampliação, caso necessário, em momentos históricos futuros. O princípio da universalidade declara que esses direitos são pertencentes a toda a raça humana, independentemente de qualquer distinção. (MAIA; GRADELLA JÚNIOR, 2021)

Em seguida tem-se o princípio da indivisibilidade, ponderando a inexistência total de hierarquia, todos devem usufruir igualmente de cada um dos 30 artigos presentes no DUDH. O princípio da interdependência trata da vinculação que cada um dos artigos possui, sendo necessária à sua aplicação em totalidade e não individualmente e por fim, o princípio da inalienabilidade, que argui não ser possível a transmissão desses direitos para outros indivíduos. (MAIA; GRADELLA JÚNIOR, 2021)

Como citado nos parágrafos anteriores, todas as normas presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos devem ser aplicadas a todos e de forma conjunta, para que nenhum direito fique desamparado. Desta forma, após anos de invisibilidade perante a sociedade, os direitos adquiridos pelos portadores de transtorno mental devem ser preservados e monitorados, para que lastimas como as ocorridas no hospital Colônia não voltem a se repetir.

4       DIREITOS HUMANOS E A LUTA ANTIMANICOMIAL

O respeito aos direitos básicos das pessoas portadoras de transtornos mentais demorou muito para se tornar pauta em meio aos direitos humanos, tanto que os modelos de manicômios espalhados pelo mundo não seguiam em circunstância alguma os parâmetros exigidos na DUDH, como o previsto em seu art. 5º: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, e mesmo assim o poder público simplesmente ignorava essas violações. O Hospital Colônia, foi o maior exemplo brasileiro de total descaso com os Direitos Humanos do indivíduo. Portadores de transtornos mentais e aqueles menosprezados pela sociedade eram levados aos montes para o Colônia, que com o tempo se tornou um campo de extermínio e foi nomeado pela escritora e jornalista brasileira Daniela Arbex, como o “Holocausto brasileiro”. (DUDH, 1948).

Manicômios são instituições que inicialmente foram criadas com intuito de tratar pessoas portadoras de transtornos mentais, mas utilizando métodos de contenção e intimidação, tortura e reclusão. No Hospital Colônia não foi diferente, de acordo com Arbex, eles não possuíam nenhum critério médico para as internações, grande parte dos pacientes eram pessoas que não seguiam os padrões de normatização da época, eram eles mulheres independentes, alcoólatras, homossexuais, negros, prostitutas e epilépticos. “A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar” (ARBEX, 2013, p. 25).

Existiam aos montes pessoas que não eram aceitas socialmente ou que apenas eram os desafetos de alguém importante e isso já era motivo para internação no Colônia, levando a sua superlotação em 1930, quando ratos se tornaram alimento cotidiano, quando as camas foram substituídas por capim para que os pavilhões suportassem ainda mais internos, boa parte andava pelado por não haver roupas suficientes para todos, o pátio possuía um odor forte de fezes humanas e nele andavam misturados os vivos entre os mortos.

A situação vivida pelos pacientes do Colônia era absurda, eles eram torturados, muitas vezes até a morte, passavam fome, frio e sede, as mulheres estavam sempre sujeitas a abusos sexuais, lá não possuía médicos suficientes e nem com profissionalização adequada para tratar dos internos. Cerca de 60 mil pessoas foram mortas em decorrência da inexistência absoluta de direitos básicos e de respeito a dignidade da pessoa humana, sem contabilizar todos os corpos que foram vendidos para universidades de medicina e dissolvidos em ácido.

Todos os líderes políticos, diretores do hospital, funcionários e a própria sociedade foram coniventes com todas as barbáries ocorridas dentro do hospital e nada foi penalizado, até hoje, todos se encontram impunes. Enquanto isso, a grande maioria dos internos perdeu a vida, outras seguem com traumas incuráveis, pessoas que já sofriam tanto com suas patologias passaram toda a vida sem receber nem o mínimo resquício de sentimento de humanidade para com eles.

A importância da luta antimanicomial é inegável, os manicômios não tem como objeto a ressocialização do doente na sociedade e isso acarreta as longas internações, superlotação e consequentemente falta de estrutura para tratar os doentes. O grande objetivo dessa luta é o fim dos manicômios e a implantação de novos métodos que substituíssem o modelo hospitalocêntrico. Sendo posteriormente implantado no Brasil vários CAPs, NAPs e RAPs, criados e fiscalizados pela Lei 10.216/2001 da reforma psiquiátrica, que será melhor explicada no próximo tópico.

5 REFORMA PSIQUIÁTRICA E A LEI 10.216/2001

A reforma psiquiátrica teve início na Itália e foi se espalhando pelo mundo, chegou no Brasil no fim da década de 70, sendo sua gênese as denúncias realizadas por profissionais dos manicômios que presenciavam todos os horrores diariamente. O governo não reagiu bem a essa iniciativa e afastou todos envolvidos dos seus respectivos cargos, o que acabou por deixar o movimento ainda mais forte, sendo ele ativamente apoiado pelos familiares dos internos e pela população, posteriormente sendo intitulado de Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, o MTSM.

O objetivo do movimento era propagar todas as atrocidades que ocorriam dentro dos Hospitais Psiquiátricos e toda a ineficiência nas formas de tratamento abordadas por eles, concomitantemente procurando encontrar formas de ampliar as opções em atendimento voltado a saúde mental, de forma inclusiva e ressocializadora. Com o tempo, o movimento passou a ser denominado MNLA ou Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

A proposta da reforma antimanicomial nasceu em 18 de maio de 1987, sendo este considerado o dia da Luta Antimanicomial. Com o retorno da democracia ao país e a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), foi implantada no Brasil uma política nacional de saúde mental, onde a proposta inicial da reforma era a substituição do atual modelo hospitalar de interação para uma rede de atenção psicossocial.

E finalmente em 06 de abril de 2001 foi promulgada a lei 10.216, uma materialização de décadas de luta, uma lei que trata sobre os direitos e proteções necessárias a pessoas que portam transtornos mentais e que redireciona o modelo de assistência em saúde mental. A dita lei além de humanizar os doentes impede que os mesmos sejam internados de forma compulsória e imprudente, como acontecia décadas atrás. Em seu art. 2º, tem-se a finalidade de sua implantação, a ressocialização do paciente, “[…] o tratamento visará, como finalidade permanente, à reinserção social do paciente em seu meio”. (BRASIL, 2001)

Os pacientes passaram a obter o direito de ter inteiro conhecimento do seu tipo de transtorno e as modalidades de tratamento que podem ser utilizadas para sua melhora, as internações se tornaram esporádicas, sendo permitidas apenas após laudo médico e em caso do paciente ser um risco para ele mesmo ou para terceiros. Nesses casos de internação os médicos devem comunicar o Ministério Público da entrada e da saída do paciente.

Desde a promulgação da Lei Antimanicomial a evolução e as melhorias relacionadas ao tratamento direcionado a pessoas com transtornos mentais são incontestáveis. A quantidade de leitos espelhados pelo Brasil reduziu drasticamente e os tratamentos psicossociais vem trazendo grandes resultados, já tendo sido distribuídos por todo o país mais de 2.700 CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), sendo este um serviço de saúde comunitária voltado para pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno metal, empregando em seus métodos a psicoterapia, terapia ocupacional, oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos domiciliares, entre outros métodos que buscam preservar a cidadania e os vínculos sociais do paciente.

Além dos CAPs, foram criados também os NAPs (Núcleo de Assistência Psicossocial) que têm como objetivo oferecer atendimento especializado a mulheres e crianças vítimas de violência, na qual comparecem ao IML (Instituto Médico  Legal) para realização de corpo de delito e o RAPs (Rede de Atenção Psicossocial), criado em 2011, é toda a rede voltada para a tratamento de pessoas que necessitam de atendimento psicossocial, estando envoltos nele o CAPS, SAMU e UPA, serviços residenciais terapêuticos, unidades de acolhimentos, entre outros.

 É importante ressaltar que o objetivo da Luta Antimanicomial era o fim dos manicômios e das internações compulsórias, mas o art. 2º, inciso IX, da lei 10.2016/2001, onde fala: “ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.”, deixa uma brecha com a palavra “preferencialmente”, para que muitos possam justificar a internação como uma forma de tratamento prioritário ou até exclusiva, o que acaba por ocasionar a evolução mais lenta e gradual da Reforma Psiquiátrica. (BRASIL, 2001)

Por mais que a Lei Antimanicomial não seja perfeita, veio em um momento extremamente necessário e vem de certa forma alavancando os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Todavia, somente ela não é capaz de trazer todas as melhorias necessárias nesse processo, além das criações de leis e políticas públicas advindas do governo, também é necessário um trabalho conjunto entre sociedade e estado, para que possamos ver grandes mudanças positivas nesse âmbito, pois grande parte do problema é oriundo de um preconceito estruturado e enraizado na sociedade. 

6       CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após retratar um capitulo marcante e cheio de horror vivido no Brasil, torna-se ainda mais evidente o descaso com essas minorias, cada qual com suas individualidades eram invisíveis para a sociedade, para seus familiares e para o governo. O surgimento do maior manicômio do Brasil se deu com intuito de abrigar e tratar pessoas com transtornos mentais, mas findou se tornando um cemitério de vivos.

O hospital Colônia seguia paradigmas que iam em total desencontro com os direitos humanos. Em um país que constitucionalizou esses direitos fundamentais em 1948, os internos do Colônia sentiam fome, frio, sede, eram torturados, violados, não tinham direito ao mínimo de dignidade, e o total desprezo social voltado a esta situação era ensurdecedor.

Com a luta antimanicomial, as coisas começaram a mudar e formas de tratamentos mais humanitários começaram a ser inseridos não só no Colônia, mas em todos os manicômios do país. Com a criação da Lei 10.2016/2001 foi fortalecido o movimento que regulamentava essas novas diretrizes que ampliavam os direitos as pessoas portadoras de transtornos mentais. Apesar da lei possuir uma brecha que pode vir a ser um retrocesso em toda a luta antimanicomial, foi de grande importância para a implantação de novos modelos de tratamento e ressocialização.

Deve ser observado que apesar de toda evolução voltada para a questão da saúde mental no Brasil, o investimento público é muito abaixo do necessário, o que acaba por levar CAPs a serem fechados por falta de infraestrutura ou materiais básicos para seu funcionamento, desta forma, é indispensável a atuação do poder público e da sociedade, para que esse progresso mesmo que lento e gradual continue a acontecer e que atrocidades como as vividas em Barbacena jamais voltem a ocorrer.

REFERÊNCIAS

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[1] Bacharela em Direito. Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. Orientador: Prof. Dr. André Ricardo Fonseca da Silva.

[2] Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB). Bacharel em Direito (UNIPE). Professor da Graduação e Mestrado da UNIPE. Email: professor.andrefonseca@gmail.com