A NÃO APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM BENS DE VALORES SENTIMENTAIS
20 de dezembro de 2023NON-APPLICATION OF THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE IN GOODS WITH SENTIMENTAL VALUES
Artigo submetido em 10 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 15 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 20 de dezembro de 2023
Scientia et Ratio Volume 3 – Número 4 – Dezembro de 2023 ISSN 2525-8532 |
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Autor: Lucas Miranda do Nascimento[1] |
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RESUMO: Este trabalho acadêmico tem como objetivo analisar a aplicação do princípio da insignificância no direito penal, com foco na dimensão subjetiva do valor sentimental dos bens. A relevância desse tema reside na necessidade de compreender como a valorização subjetiva dos bens afeta a interpretação e aplicação desse princípio, que visa excluir a tipicidade de condutas de menor gravidade. Para alcançar esse objetivo, a pesquisa adota uma abordagem teórico-jurídica, baseada em revisão bibliográfica, análise doutrinária e jurisprudencial. Os objetivos gerais são: 1) analisar o princípio da insignificância no contexto do direito penal; 2) investigar o papel do valor sentimental dos bens na análise da aplicação desse princípio. Os objetivos específicos incluem: 1) contextualizar o princípio da insignificância e sua evolução no ordenamento jurídico; 2) explorar a dimensão subjetiva do valor sentimental dos bens; 3) avaliar como o valor sentimental influencia a aplicação do princípio da insignificância. A metodologia compreende pesquisa bibliográfica, análise de decisões judiciais e estudo de casos para exemplificar a aplicação do princípio em situações envolvendo o valor sentimental. A pergunta-problema central é: “Como o valor sentimental dos bens impacta a interpretação e aplicação do princípio da insignificância no direito penal?”. Este estudo busca contribuir para a compreensão do papel do valor sentimental na análise da insignificância, fornecendo subsídios para uma aplicação mais consistente e justa desse princípio no sistema jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Princípio da Insignificância; Direito Penal; Valor Sentimental dos Bens; Tipicidade; Relevância Jurídica; Dimensão Subjetiva; Aplicação Jurisdicional; Crime da Bagatela; Teoria do Bem Jurídico; Análise Jurídica; Jurisprudência Brasileira; Interpretação Legal; penalidade Mínima; Lesividade; Justiça Criminal.
ABSTRACT: This academic work aims to analyze the application of the principle of insignificance in criminal law, focusing on the subjective dimension of the sentimental value of goods. The relevance of this topic lies in the need to understand how the subjective valuation of goods is related to the interpretation and application of this principle, which aims to exclude the typical nature of less serious conduct. For this objective, the research adopts a theoretical-legal approach, based on a bibliographical review, doctrinal and jurisprudential analysis. The general objectives are: 1) analyze the principle of insignificance in the context of criminal law; 2) investigate the role of the sentimental value of goods in analyzing the application of this principle. The specific objectives include: 1) contextualize the principle of insignificance and its evolution in the legal system; 2) explore the subjective dimension of the sentimental value of goods; 3) evaluate how sentimental value influences the application of the principle of insignificance. The methodology comprises bibliographical research, analysis of judicial decisions and case studies to exemplify the application of the principle in situations involving sentimental value. The central problem question is: “How does the sentimental value of goods impact the interpretation and application of the principle of insignificance in criminal law?” This study seeks to contribute to the understanding of the role of sentimental value in the analysis of insignificance, providing support for a more consistent and fair application of this principle in the Brazilian legal system.
Keywords: Principle of Insignificance; Criminal Law; Sentimental Value of Goods; Typicality; Legal Relevance; Subjective Dimension; Jurisdictional Application; Trifle Crime; Theory of Legal Good; Legal Analysis; Brazilian Jurisprudence; Legal Interpretation; Minimum penalty; Injury; Criminal Justice.
1 INTRODUÇÃO
O Princípio da Insignificância, popularmente conhecido como Princípio da Bagatela, é um importante conceito no âmbito do direito penal brasileiro, tendo como finalidade evitar a criminalização de condutas de baixa gravidade, que não representam uma ameaça significativa à sociedade, no entanto, a aplicação deste princípio torna-se desafiadora quando se considera o valor sentimental atribuído a determinados bens ou objetos.
Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tem como objetivo explorar a relação entre o Princípio da Insignificância, o valor sentimental dos bens e a importância deste valor na análise da aplicação do referido princípio, no contexto do direito penal. A questão central abordada é até que ponto o valor sentimental atribuído a um bem pode ou deve influenciar a aplicação do Princípio da Insignificância, e do mesmo modo, como o sistema jurídico deve lidar com a complexidade da dimensão subjetiva do valor sentimental.
A interseção entre o Princípio da Insignificância e o valor sentimental dos bens é relevante para a compreensão do direito penal brasileiro e para a busca de um sistema jurídico que seja justo, equitativo e sensível às nuances das experiências humanas, assim, a partir da revisão da literatura, análise de casos judiciais e consulta a renomados autores do direito penal, este TCC visa contribuir para a discussão e reflexão sobre como conciliar a necessidade de um sistema penal que se concentra em condutas verdadeiramente relevantes com a importância do valor sentimental para o indivíduo.
Portanto, esta pesquisa busca lançar luz sobre um tema jurídico complexo e atual, explorando a interação entre o Princípio da Insignificância e o valor sentimental dos bens, destacando a importância de uma abordagem equilibrada e sensível no direito penal. A relevância do valor sentimental quanto a análise da aplicação do Princípio da Insignificância levantam questões complexas e desafia o sistema legal a considerar não apenas os aspectos objetivos, mas também as dimensões subjetivas e emocionais das condutas criminosas.
Nos capítulos subsequentes, aprofundaremos essa discussão, analisando casos emblemáticos e as perspectivas de respeitáveis estudiosos arcaicos e contemporâneos do direito penal, bem como, o posicionamento dos tribunais pátrios, através de jurisprudências, analisando os critérios para a aplicação do referido princípio, estimulando a realização de demais estudos dobre este tema e contribuindo para uma compreensão mais completa e crítica do tema.
2 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO PENAL
O Princípio da Insignificância ou Princípio da Bagatela, como também é conhecido, teve sua origem no Direito Romano e a sua aplicação era limitada apenas no ramo do direito provado, porém, a sua utilização no Direito Penal ergueu-se através do renomado e importante cientista jurídico Claus Roxin, onde incorporou o princípio em comento ao direito penal, ao publicar a sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal – Roxin, em 1964, sendo erguido como uma máxima de interpretação restritiva do tipo penal, onde seria excluída a tipicidade penal da conduta cometida pelo agente infrator, quando existente ínfimas lesões ao bem jurídico.
Outrossim, após o ilustre e renomado cientista jurídico Claus Roxin adotar o Princípio da Insignificância para o Direito Penal, trazendo a sua aplicação do direito privado para o direito público, outros importantes estudiosos do Direito Penal também passaram a estudar e discutir sobre a aplicação do referido princípio, no que desrespeita a uma melhor análise para aplicação deste, sob a análise dos requisitos objetivos e subjetivos.
O princípio da insignificância é vetor interpretativo do tipo penal, tendo por escopo restringir a qualificação de condutas que se traduzam em ínfima lesão ao bem jurídico nele (tipo penal) albergado. Tal forma de forma de interpretação insere-se num quadro de válida medida de política criminal, visando, para além da descarcerização, ao descongestionamento da Justiça Penal, que deve ocupar-se apenas das infrações tidas por socialmente mais graves. Numa visão humanitária do Direito Penal, então, é de se prestigiar esse princípio da tolerância, que, se bem aplicado, não chega a estimular a ideia de impunidade. Ao tempo que se verificam patentes a necessidade e a utilidade do princípio da insignificância, é imprescindível que aplicação se dê de maneira criteriosa, contribuindo sempre tendo em conta a realidade brasileira, para evitar que a atuação estatal vá além dos limites do razoável na proteção do interesse público (Masson, 2019, p. 102).
Ademais, cumpre evidenciar que, este princípio toma como base para a sua inserção no direito penal, o Princípio da Mínima Intervenção do Estado, mas, o Princípio da Bagatela ainda não encontra-se disposto expressamente em nosso ordenamento jurídico por meio de uma lei, mas, tem a sua aplicação no sistema jurisdicional brasileiro, enquanto ferramenta do direito penal, por meio de jurisprudências, onde são analisados como requisitos para a análise de ocorrência ou não de lesão relevante, os requisitos objetivos, onde observa a existência da mínima ofensividade, inexistência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada, conforme jurisprudências do Supremo Tribunal Federal.
Posto isto, tendo em vista a correlação entre o Princípio da Insignificância e o Princípio da Intervenção Mínima do Estado (um dos motivos pelo qual Roxin baseou-se para permitir a inserção do Princípio da Insignificância ao Código Penal), onde veio a ser introduzida pelo Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello no Habeas Corpus de nº 103.657, de sua relatoria, onde fora destacado de maneira evidente os requisitos objetivos supramencionados. Senão, vejamos:
O princípio da insignificância –que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina, Tal postulação – que considera necessária , na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. (STF, 15 de fevereiro de 2011)
Ato contínuo, além dos requisitos objetivos estabelecidos pelos Tribunais Superiores, também fora elencados requisitos subjetivos a serem analisados, para analisar melhor a existência de uma conduta insignificante, visando a proteção aos bens jurídico protegidos pelo direito penal, sendo analisado sobre a perspectiva do agente infrator, onde se observa a existência de reincidências ou habitualidades, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, conforme estabelece o art. 59 do Código Penal, e na vítima, a condição econômica, o valor sentimental do bem, as circunstâncias do fato e o resultado final do crime, não podendo, portanto, reconhecer a insignificância da conduta apenas sobre o valor pecuniário do bem ou pelas demais características contidas nos requisitos objetivos.
[…] “há que se conjugar a importância do objeto material para a vítima, levando-se em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem” […]. (TJ-BA, 06 de novembro de 2013)
Na mesma linha, tendo em vista a importante e necessária análise dos requisitos subjetivos, em casos de pleito da insignificância da conduta, onde visa proteger os bens jurídicos tutelados (a saúde, a honra, a autoestima, a intimidade, a autodeterminação, a dignidade sexual, a liberdade individual, o patrimônio e correlatos), vem sendo reiteradamente discutida, onde podemos observar a sua propensão expositiva por maio do julgado a seguir:
“Não se pode, tão somente, avaliar a tipicidade da conduta praticada em vista do seu valor econômico, especialmente porque, no caso, o prejuízo suportado pela vítima, obviamente, é superior” […]. (STF, 06 de setembro de 2011)
Mantendo a mesma tese e fundamento nos julgamentos, os Tribunais Superiores julgaram alguns casos, onde analisaram cada caso concreto sob os requisitos objetivos e subjetivos, condições essas, que são essenciais para uma melhor avaliação do fato e uma justa aplicação jurisdicional, visando a proteção da parte mais vulnerável e ameaçada, de acordo com a proporção do dano causado, senão vejamos:
[…] Para reconhecer o delito como insignificante deve haver a ponderação dos requisitos objetivos e subjetivos. Dentre os requisitos objetivos necessários para a sua caracterização encontramos a mínima ofensividade da conduta; ausência de periculosidade social; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica. Por outro lado, os requisitos subjetivos consistem na importância do bem para a vítima; valor sentimental; e as circunstâncias e resultado do delito.[…] (STF, 18 de maio de 2022)
Nesse diapasão, resta evidenciado que, após o renomado cientista jurídico Claus Roxin atrelar o referido princípio ao Direito Penal, sob sua linha de pensamento funcionalista, vários tribunais e estudiosos do direito passaram a se debruçar mais sobre o tema, bem como, levantaram-se várias discussões nos Tribunais Superiores, tomando como base vários casos concretos, onde analisam a existência de dano considerável a vítima o infortúnio observando a possibilidade ou não de aplicar se o referido princípio, seja na Seara do direito público ou privado.
3 DO VALOR SENTIMENTAL DOS BENS E SUA RELEVÂNCIA
Após a análise sob o surgimento do Princípio da Insignificância, a sua aplicação no Direito Penal e os requisitos necessários elencados pelos Tribunais Superiores, para apurar a existência de considerável lesão jurídica, ainda sob os requisitos subjetivos atrelados a vítima, destaca-se a ligação sentimental existente entre o bem subtraído e a vítima.
A análise de cada caso concreto, visando a apuração de vínculo sentimental entre o bem objurgado e a vítima se faz tão relevante, que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de que, se deve analisar o caso concreto na perspectiva da vítima, levando em consideração a existência peculiar de reduzido sentimento de perda, senão vejamos:
Já do ângulo da vítima, o exame da relevância ou irrelevância penal deve atentar para o seu peculiarmente reduzido sentimento de perda por efeito da conduta do agente, a ponto de não experimentar revoltante sensação de impunidade ante a não incidência da norma penal que, a princípio, lhe favorecia. (STF, 20 de março de 2012)
Ou seja, diante do pronunciamento supramencionado, o Relator Ministro Ayres Britto transcende a tamanha importância em analisar a existência de sofrimento para a vítima, em decorrência da perda do objeto, sob a existência de vínculo sentimental entre o objeto subtraído e a vítima, visão esta, derivada do pensamento se diversos doutrinadores que também é seguida por outros demais Ministros, como é o caso da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Laurita Vaz.
“Há que se conjugar aimportância do objeto material para a vítima, levando-se emconsideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem” […] (STJ, 07 de abril de 2005)
Ato contínuo, levando em consideração que o valor sentimental atribuído a um determinado bem é de valor imensurável, visto que, os objetos que detém este significado passam a construir uma identidade e inestimável representatividade para determinadas pessoas, ou seja, são abarrotados de memórias, significados, narrativas, personalidade, história e simbologias, possuindo uma conexão atemporal.
Neste sentido, surge para o judiciário de forma excepcional, uma grande importância quanto a análise dos requisitos subjetivos a serem analisados na perspectiva da vítima, para uma maior atenção quando a existência de valor sentimental entre a o bem/objeto subtraído e a vítima, seguindo a linha intelectual de grandes obras, de renomados cientistas jurídicos, para analisar a existência de lesões aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, senão vejamos:
Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de “valor”, isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são, “valem”. Por isso são, em geral, apetecidos, procurados, disputados, defendidos, e, pela mesma razão, expostos a certos perigos de ataques ou sujeitos a determinadas lesões. (Toledo, 1994, p. 15).
Ainda sob a mesma visão, vários outros cientistas jurídicos defendem uma cautela a mais, quando se tratar da aplicação do princípio da insignificância, sob a perspectiva de que, para a sua aplicação, é imperioso analisar as condições do ofendido, levando em consideração a tamanha importância do objeto material subtraído para a vítima, visando apurar a existência de valor sentimental do respectivo bem, senão observemos:
[…] “Há que se conjugar a importância do objeto material para a vítima, levando-se em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem” […] (Masson, 2019, p. 109).
Nesta senda, seguindo a mesma linha intelectual das doutrinas supramencionadas e das demais citadas no decorrer deste trabalho, Magistrados, Desembargadores e Ministros, em alguns julgados, passaram a fundamentar as decisões sob esses mesmos argumentos, trazendo em suas decisões um meio para melhor analisar o caso concreto, visando proteger bens jurídicos que, eventualmente foram ou possam ser ameaçados. Observemos julgados:
Há que se conjugar aimportância do objeto material para a vítima, levando-se emconsideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem,como também as circunstâncias e o resultado do crime, tudo de modo adeterminar, subjetivamente, se houve relevante lesão. (STJ, 07 de abril de 2005)
Nesta senda, cita-se como exemplos desse contexto de ligação sentimental entre o bem e a vítima, um porta-retrato, onde encontra-se uma foto em família, em que um ou mais membros presentes na foto já tenham falecidos, inexistindo nesta situação outra imagem igual ou que possa ser substituída.
Um outro exemplo a ser citado, em que foi caso de afastamento do Princípio da Insignificância pelo Supremo Tribunal Federal, no que tange a existência de valor sentimental entre o bem subtraído e a vítima, ocorreu em relação a subtração de um “Disco de Ouro” pertencente a um músico brasileiro, onde, este recebeu a referida premiação no auge de sua carreira, tornando este objeto um item de imensurável valor sentimental. Vejamos o trecho do julgado:
[…] “Furto de quadro denominado “disco de ouro”. Premiação conferida àqueles artistas que tenham alcançado a marca de mais de cem mil discos vendidos no País. Valor sentimental inestimável.” […] (STF, 06 de setembro de 2011)
Seguindo a linha, também pode-se citar como exemplo, os casos de furto de lápides em túmulos, onde o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu por não aplicar o princípio da Insignificância no referido caso, tendo em vista que, os objetos subtraídos são atulhados de memórias e significados, passando a existir e transpassar de maneira indubitável um valor sentimental, senão observemos o referido julgado:
“Aplicação, em sentença, do princípio da insignificância. Impossibilidade. […] Objetos dotados de valor sentimental.” (TJ-SP, 08 de agosto de 2022)
Sob esta mesma perspectiva, cumpre salientar que a não aplicação do princípio da insignificância também recai nos casos em que envolvem animais de estimação, tendo em vista que, há grande iminência em existir uma ligação emocional incomparável entre determinados indivíduos e seus animais de estimação, em decorrência de várias situações suportadas pela vítima, no decorrer de sua vida, tendo o animal nesta situação um ínfimo valor ou não, senão observemos o julgado:
“FURTO DE ANIMAL DE ESTIMAÇÃO QUE ALÉM DO VALOR PATRIMONIAL POSSUI INESTIMÁVEL VALOR SENTIMENTAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AFASTADO.” (TJ-SC, 25 de outubro de 2012)
Assim, resta evidenciada a necessidade em realizar uma minuciosa análise ao caso concreto, com base em provas documentais e testemunhais onde existe indubitavelmente abalo extrapatrimonial considerável, é quando o bem subtraído pertenceu a um familiar, em que a vítima possuía um alto grau de intimidade, zelo e apreço, tendo este já falecido, e sendo o referido objeto o único bem do familiar falecido em posse da vítima.
Ademais, cumpre evidenciar que, além dos Tribunais Superiores e renomados doutrinadores do direito, outros estudiosos em formação acadêmica também buscam estudar a relevância do valor sentimental nos casos em que envolvem o Princípio da Insignificância, senão vejamos:
Em terceiro lugar, existem bens cujo valor econômico é praticamente nulo, mas que possuem um valor sentimental e existencial insubstituíveis. Por exemplo, um velho e surrado caderninho com receitas que uma mulher guarda como única recordação de sua mãe ou avó, ou a camisa desbotada de um time de futebol, camisa esta usada em um grande título e que traz grandes alegrias e recordações ao seu dono. Bens de valor sentimental inestimável que, possivelmente, muitos dos proprietários sequer venderiam, ainda que se lhes fosse oferecido um valor altíssimo (BRASIL. 2016).
Assim, em última análise, a relevância do valor sentimental dos bens destaca a importância de uma justiça equitativa, que respeita não apenas a lei, mas também a experiência humana em toda a sua complexidade. O sistema legal deve ser sensível às emoções e relações pessoais, garantindo que a justiça seja verdadeiramente alcançada em cada caso. O reconhecimento desse valor contribui para um sistema jurídico mais justo e compreensivo, refletindo uma sociedade que valoriza não apenas bens materiais, mas também os vínculos emocionais que eles representam.
3.1 A DIMENSÃO SUBJETIVA DO VALOR SENTIMENTAL
A dimensão subjetiva do valor sentimental é uma consideração crucial em várias áreas do direito, especialmente quando se trata da aplicação do princípio da Insignificância no campo penal. O valor sentimental de um bem é intrinsecamente pessoal, variando amplamente de indivíduo para indivíduo, e está profundamente enraizado em suas experiências, memórias e conexões emocionais. Essa dimensão subjetiva não apenas torna a análise legal mais complexa, mas também ressalta a necessidade de um sistema legal sensível às complexidades da experiência humana.
Para compreender plenamente a dimensão do valor sentimental, é essencial reconhecer que os objetos e bens materiais muitas vezes tornam portadores de significados e conexão emocional ao lingo da vida de uma pessoa.
Psicólogos como Daniel Kahneman (1982), em sua pesquisa sobre economia comportamental, demonstram como as pessoas atribuem valor emocional a objetos com base em suas experiências e memórias pessoais. Eles podem representar uma ligação com o passado, uma conexão com entes queridos ou até mesmo uma extensão da própria identidade.
Em razão da tamanha dimensão subjetiva do valor sentimental, alguns estudiosos do direito sustentam a importância em analisar os requisitos subjetivos da vítima, para apurar a existência de considerável lesão, senão vejamos o que diz o renomado cientista jurídico contemporâneo Cleber Masson:
O reconhecimento do princípio da insignificância depende de requisitos objetivos, relacionados ao fato, e de requisitos subjetivos, vinculados ao agente e à vítima. Por esta razão, seu cabimento deve ser analisado no caso concreto, de acordo com as suas especificidades, e não no plano abstrato (Masson, 2019, p. 103).
Ato contínuo, como meio de proteção aos bens jurídicos, não se pode ater a análise do caso concreto apenas ao valor do bem, mas a existência de ofensividade dos bens protegidos pelo Estado, o desvalor social da ação e a intensidade da culpabilidade do agente, conforme bem menciona Fagundes (2019).
Neste sentido, resta evidenciada a tamanha dimensão subjetiva sentimental que depositamos em determinados objetos, devendo, portanto, o judiciário analisar cada caso concreto com a sua devida cautela, visando a proteção de bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal.
4 A RELEVÂNCIA DO VALOR SENTIMENTAL NA ANÁLISE DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
A análise da aplicação do Princípio da Insignificância no contexto jurídico brasileiro é um tema complexo de trabalhar, visto que, envolve a ponderação de diversos fatores para determinar se uma conduta deve ser considerada como crime ou não. Este princípio, também conhecido como Princípio da Bagatela, visa evitar a criminalização de ações de baixa gravidade, ou seja, aquelas que não representam um perigo significativo para a sociedade, no entanto, a questão que se coloca é: como o valor sentimental atribuído a um bem influencia a aplicação desse princípio? A resposta a essa pergunta é crucial, pois pode afetar diretamente a justiça e a equidade no sistema legal.
Para abordar essa questão de maneira adequada, é essencial considerar a dimensão subjetiva do valor sentimental. O valor sentimental de um bem não pode ser mensurado objetivamente, uma vez que está intrinsecamente relacionado às experiências, memórias e emoções pessoais associadas a esse bem.
Essa dimensão subjetiva do valor sentimental nos leva a uma importante consideração: como a lei pode e deve lidar com algo tão intrinsicamente pessoal? Como pode determinar objetivamente o valor emocional de um bem na análise da aplicação do princípio da insignificância?
Rogério Greco, um dos cientistas jurídicos mais renomados no campo do direito penal brasileiro, aborda em sua obra “Curso de Direito Penal Brasileiro” a necessidade de analisar um caso concreto, levando em consideração a relevância do bem objeto de tutela jurisdicional, diante da existência de dano irreparável ou de uma escala consideravelmente danosa, tendo em vista que, para o caso amoldar-se ao princípio em comento, é necessária a total comprovação de inexistência de dano considerável à vítima. Vejamos:
Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção (Rogério Greco, 2019, p. 113).
Nesta linha, ele defende a aplicação do Princípio da Insignificância como um filtro necessário para a atuação do Direito Penal, no entanto, quando se trata do valor sentimental, pode ser tão significativo para um indivíduo que justifica a não aplicação do Princípio da Insignificância, sob a existência indubitável de sessão irreparável a vítima. Isso nos leva a uma reflexão profunda sobre a relação entre a justiça legal e a justiça emocional. Como conciliar a necessidade de um sistema penal que se concentra em bens relevantes com importância do valor sentimental para o indivíduo?
A análise voltada a identificar a ligação sentimental entre o bem e o agente lesado é uma forma de humanizar o direito penal. Ela reconhece a importância de considerar não apenas o aspecto material de uma conduta, mas também o impacto emocional que essa conduta pode ter sobre a vítima. Quando um objeto de valor sentimental é roubado, danificado ou destruído, a vítima não perde apenas um bem material; ela perde uma parte de sua história, de sua identidade e de suas conexões emocionais.
Ato contínuo, cumpre evidenciar que, o poder judiciário, ao analisar o caso concreto, fazendo a análise sob os requisitos objetivos e subjetivos listados pelos Tribunais superiores, tomando como base os fundamentos e provas apresentadas em juízo, poderá apurar a existência de abalo extrapatrimonial capaz de prejudicar bens jurídicos amparados pelo Direito Penal, facilitando assim, uma melhor aplicação do direito.
Existem litígios em que, na fase instrutória apresentam-se de forma clara a existência de ligação sentimental entre o bem e a vítima, por exemplo, quando ocorre um furto sobre uma aliança de casamento, onde, embora o valor de mercado da aliança possa ser abaixo, presumidamente existe um valor sentimental imensurável ao casal, mas, também existem casos que exigem do judiciário necessita de uma melhor análise sobre as provas colhidas e os fundamentos apresentados para concluir a existência de dano considerável a vítima, sob os aspectos subjetivos, destacando, a análise de existência de dano imaterial a vítima, sobre a existência de valor sentimental para o agente lesado.
Nesta linha, em casos judiciais que envolvem bens de valor sentimental, os Tribunais brasileiros frequentemente adotam uma abordagem que reflete as perspectivas dos autores mencionados, passando a reconhecer que o valor sentimental de um bem pode ser tão significativo que justifica a não aplicação do princípio da insignificância, contudo, uma melhor análise na proteção dos elementos subjetivos das vítimas não toma tanto zelo, quanto a proporção que deveria.
Em última análise, a dimensão subjetiva do valor sentimental dos bens acrescenta uma complexidade importante à aplicação da insignificância, neste sentido, cumpre destacar a necessidade de uma análise sensível e equilibrada das condutas criminais, que leve em consideração não apenas os fatos objetivos, mas também a experiência humana profunda e pessoal associada aos bens, com o intuito de apurar a existência de ataque a bens jurídicos amparados pelo direito penal.
Isso ressalta a importância de uma abordagem que busque a justiça de forma equilibrada, considerando tanto a proteção dos bens jurídicos quando a dimensão subjetiva do valor sentimental, assim, nesse contexto, podemos observar a tamanha relevância do valor sentimental na análise da aplicação do Princípio da Insignificância, não podendo o referido princípio ser aplicado de maneira automática, devendo a análise deve ser holística e completa.
Posto isto, surge a importância de considerar tanto os aspectos objetivos, como o valor econômico, quanto os aspectos subjetivos, como o valor sentimental, visto que, essa abordagem permite que o sistema legal seja mais justo, equitativo e sensível às complexidades da experiência humana, garantindo que a justiça seja verdadeiramente alcançada em cada caso. Afinal, o direito penal não deve ser cego às emoções e relações pessoais que moldam a vida das pessoas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interação entre o Princípio da Insignificância e o valor sentimental dos bens no direito penal é complexa e relevante, tendo em vista que, este importantíssimo princípio é essencial para evitar a criminalização de condutas de baixa gravidade, no entanto, a dimensão subjetiva do valor sentimental não pode ser ignorada.
Neste sentido, cumpre evidenciar que, o valor emocional atribuído a um bem passa a ser de tamanha relevância, que o sistema jurídico deve se ater a essas complexidades das experiências humanas, seguindo a linha de grandes doutrinadores e jurisprudências de tribunais que já se manifestaram quanto ao referido tema, onde visa equilibrar o valor sentimental e a gravidade objetiva da conduta do agente delituoso.
Portanto, a conclusão destaca a importância de um sistema jurisdicional legal, sensível às emoções e relações pessoais, visando a aplicação de uma justiça não apenas pela perspectiva puramente objetiva, mas também levar em consideração o impacto emocional fruto das condutas criminosas, para que seja aplicado o direito de uma forma mais justa e necessária.
Este trabalho contribui para a reflexão sobre a relevância do valor sentimental na aplicação do Princípio da Insignificância, visando a não aplicação do referido princípio nas situações em que envolvam bens de valores sentimentais para a vítima, com o intuito de proteger bens jurídicos tutelados pelo direito penal, sendo eles, a honra, a autoestima e a saúde, em decorrência de considerável lesão à vítima, oriunda da conduta delituosa do agente infrator.
REFERÊNCIAS
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[1] Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.