O TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL RELIDO À LUZ DA TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO NO CONTEXTO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS
30 de junho de 2024HUMAN TRAFFICKING FOR THE PURPOSE OF SEXUAL EXPLOITATION REVIEWED IN THE LIGHT OF THE DOMINATION OF FACT THEORY IN THE CONTEXT OF CRIMINAL ORGANIZATIONS
Artigo submetido em 28 de maio de 2024
Artigo aprovado em 20 de junho de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024
Scientia et Ratio Volume 4 – Número 6 – Junho de 2024 ISSN 2525-8532 |
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Autor: Ana Carolina Couto Matheus[1] |
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RESUMO: A pesquisa analisou o tipo penal do tráfico de pessoas previsto no art. 149-A, do Código Penal, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana. Observou-se os elementos constitutivos, a evolução histórico-legislativa, os principais dispositivos legais e internacionais aplicáveis, a Lei 13.344/2016, a Convenção de Palermo e contextualizou com as principais discussões político-doutrinários dos elementos que o compõem. Foi utilizado o método dedutivo, as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional, da pesquisa bibliográfica e do fichamento. O desenvolvimento do tema se pautou na persecução dos objetivos gerais e específicos que nortearam a produção. A pesquisa se encerrou com as considerações finais que consubstanciaram o resultado dos achados, findando por confirmar a hipótese inicialmente concebida, para correlacionar o referido tipo penal com a teoria do domínio do fato a fim de problematizá-lo no âmbito das organizações criminosas.
Palavras-chave: Tráfico de Pessoas. Organizações Criminosas. Teoria do Domínio do Fato.
ABSTRACT: The research analyzed the criminal type of human trafficking provided for in art. 149-A, of the Penal Code, based on the principle of human dignity. The constituent elements, the historical-legislative evolution, the main applicable legal and international provisions, Law 13,344/2016, the Palermo Convention were observed and contextualized with the main political-doctrinal discussions of the elements that compose it. The deductive method, referent, category, operational concept, bibliographic research and registration techniques were used. The development of the theme was based on the pursuit of the general and specific objectives that guided the production. The research ended with the final considerations that substantiated the results of the findings, ending up confirming the hypothesis initially conceived, to correlate the aforementioned criminal type with the theory of the domain of the fact in order to problematize it within the scope of criminal organizations.
Keywords: Human Traficking. Criminal Organizations. Fact Domination Theory.
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa tem como tema o tráfico de pessoas no Brasil de forma a trazer em seu contexto a teoria do domínio do fato. O presente trabalho foi organizado em quatro capítulos.
O primeiro capítulo é intitulado como “Considerações Gerais a respeito do tráfico humano sob uma perspectiva histórico-social”, e possui como subtópicos “Tráfico Humano e Dignidade Humana” e “Noções Gerais a respeito do tráfico humano”.
O objetivo do primeiro capítulo é fazer abordagens genéricas em relação a sua origem histórica, bem como sua situação atual no âmbito mundial, considerando os entendimentos das legislações vigentes que a regulam, além de entendimentos doutrinários, relacionando a ideia de dignidade humana.
O segundo capítulo “Tráfico de pessoas”, organizado em três subtópicos. O primeiro subtópico é denominado “Conceito de Tráfico de Pessoas (art. 149-A, do Código Penal)” ao passo que o segundo, intitulado “Direito Penal Sexual”, se percebe a recorrência da exploração sexual das vítimas, tendo tal prática como finalidade. Em seguida é feita uma abordagem história em relação ao conceito de tráfico humano, de maneira a compreender suas possíveis origens à luz dos entendimentos doutrinários. O objetivo foi conciliar as principais características da legislação de combate ao tráfico humano, com foco especial para as primordiais mudanças na evolução de tal fenômeno.
O terceiro capítulo intitulado: “Tráfico de pessoas para fim de exploração sexual em âmbito internacional”, objetiva discorrer do panorama legal no âmbito internacional, abordando os principais instrumentos normativos internacionais, paralelamente com os instrumentos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro.
O referido capítulo divide-se em três subtópicos, sendo o primeiro: “Distinção entre tráfico de migrantes ilegais e tráfico humano”, tal subtópico visa a diferenciar os dois fenômenos com fundamento nos critérios nos quais se tornam objetos de confusão, sendo necessário para a compreensão desses fenômenos, uma vez que a grande maioria das ocorrências de tráfico se dá em volta da migração ilegal. O segundo subtópico estuda a doutrina a respeito dos instrumentos vigentes e como se deu a evolução de um para outro. O terceiro subtópico objetiva discorrer acerca da evolução histórico-social das legislações.
Por fim, o quarto capítulo denomina-se: “A Teoria do Domínio do Fato”, dividido em dois subtópicos: “Origens” e “Aplicabilidade ao tráfico humano”. Trata-se do foco da pesquisa, pois tem como propósito associar o tráfico humano à mencionada teoria, e tem como pano de fundo as organizações criminosas. O primeiro subtópico analisa as origens da referida teoria, ao passo que o segundo objetiva a atrelar ao objeto de estudo da presente pesquisa, mencionando os apontamentos doutrinários pertinentes.
O trabalho de pesquisa em testilha utilizou o método dedutivo nas fases de investigação e tratamento dos dados. Nas distintas fases da pesquisa foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional, da pesquisa bibliográfica e do fichamento. O desenvolvimento do tema se pautou pela persecução dos objetivos gerais e específicos que nortearam a produção, consubstanciando o resultado dos achados, findando por confirmar a hipótese inicialmente concebida.
2 CONSIDERAÇÕES GERAIS A RESPEITO DO TRÁFICO HUMANO SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIAL
Nos dias atuais, o tráfico humano é reconhecido como uma forma contemporânea de escravidão, especialmente porque é uma prática que degrada piamente a dignidade da pessoa humana, chegando ao ponto dos indivíduos serem tratados como meros objetos comerciais. Para melhor compreender o surgimento de tal situação, é necessário explorar as razões que contribuíram para a sua existência e o que se entende por dignidade humana.
2.1 O TRÁFICO HUMANO E A DIGNIDADE HUMANA
A dignidade humana, derivada do termo “dignus”, refere-se à honra e importância intrínseca de cada indivíduo, protegendo contra tratamentos degradantes ou discriminatórios. São Tomás de Aquino e Kant (1974) foram importantes para estabelecer a ideia de dignidade como inerente a todo ser humano, sendo esta uma qualidade única e insubstituível.
As dimensões da dignidade humana incluem a proibição de tratamentos degradantes, como tortura e discriminação, conforme previsto na Constituição Federal. Além disso, há a obrigação de garantir condições mínimas para a sobrevivência, o que é conhecido como “mínimo existencial”.
Durante o século XX, especialmente após as grandes guerras, houve uma atenção crescente à dignidade humana devido aos horrores e desrespeitos cometidos. Mesmo com avanços legislativos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda persistem problemas como a discriminação de gênero e, especialmente, o tráfico de pessoas.
O tráfico humano representa uma grave violação da dignidade humana, reduzindo indivíduos a meros objetos de exploração. Apesar dos esforços para promover e proteger os direitos humanos, o tráfico de pessoas continua a ser um desafio significativo na sociedade contemporânea.
2.2 NOÇÕES INICIAIS A RESPEITO DO TRÁFICO HUMANO
O tráfico humano, uma grave violação dos direitos humanos, ganhou destaque no século XX, especialmente com o Protocolo de Palermo em 2004 no Brasil. Originado na escravidão, conforme Bonjovani (2004, p. 17) existem registros do tráfico desde os séculos XIV e XVII na Itália durante o Renascimento.
Com a escravidão, povos africanos foram controlados pelas nações europeias para trabalho forçado nas colônias. Após a abolição da escravidão, a população negra enfrentou marginalização, especialmente durante a “belle époque brasileira”, sendo empurrada para áreas periféricas como favelas.
Mulheres, especialmente negras e economicamente desfavorecidas, são frequentemente vítimas de tráfico humano para exploração sexual, incluindo travestis, transexuais e outras minorias de gênero. Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis devido à sua idade e falta de experiência.
Ao realizar estudos acerca do tráfico de mulheres na região amazônica, Castro (2009, p. 259) afirma que a exploração sexual feminina teve origens durante o regime militar, com o impulsionamento da indústria de mineração e a negligência em relação à segurança nacional.
Para Socorro e Smith (2017, p. 89) o desenvolvimento da região amazônica, durante o período de corrida do ouro, impulsionou migrações em busca de riquezas, especialmente de nordestinos economicamente desfavorecidos e sulistas com capital para investir. Isso também aumentou a vulnerabilidade das mulheres à exploração sexual.
Segundo Castro (2009, p. 468), as mulheres enfrentavam limitações no mercado de trabalho, com poucas opções além da prostituição, especialmente em trabalhos informais. A exploração sexual na região amazônica tem raízes na escravidão, onde mulheres eram aliciadas para escravidão sexual em quilombos.
Além disso, seringueiros na Amazônia aprisionavam índias como parceiras sexuais, contribuindo para a formação de famílias inter-raciais na região. Para Freyre (2008, p. 538), o tráfico humano, especialmente entre a população negra, teve origem na exploração sexual das mulheres, muitas vezes vista como uma prática informal, principalmente entre as mulheres negras.
Diversos fatores, incluindo questões biológicas e de gênero, contribuem para que as mulheres sejam as principais vítimas do tráfico humano, incluindo transexuais e travestis. Para Siqueira e Quinteiro (2014, p. 112), as travestis enfrentam grande discriminação no mercado de trabalho, com poucas opções além da prostituição devido à falta de aceitação social. Para muitas delas, essa é a única alternativa viável para sobreviver, já que outras profissões são geralmente fechadas para esse grupo.
Crianças e adolescentes são frequentemente alvos do tráfico humano devido à sua vulnerabilidade e falta de experiência para resistir ao aliciamento dos traficantes. Em algumas regiões do Brasil, famílias chegam a incentivar a exploração sexual de suas próprias filhas em troca de benefícios financeiros, alimentando o ciclo de exploração.
O Brasil, com sua vasta extensão territorial e fronteiras difíceis de controlar, desempenha um papel importante no tráfico de pessoas. As organizações criminosas envolvidas nesse tráfico são altamente organizadas, com uma divisão clara de funções entre seus membros.
A teoria do domínio do fato é aplicável aos casos de tráfico humano, responsabilizando não apenas os que realizam diretamente a ação criminosa, mas também aqueles que contribuem de alguma forma para o sucesso do crime, seja de forma direta ou indireta, financeira ou não. Essa teoria amplia a noção de autoria criminal, considerando aqueles que detêm o controle intelectual sobre a ação criminosa.
3 TRÁFICO DE PESSOAS
O tráfico humano é uma transação financeira baseada em três eixos essenciais, dando a ideia de um triângulo. No primeiro eixo se tem a oferta de mercadorias, que no caso são as pessoas, no segundo e terceiro eixo encontram-se a demanda por essa mercadoria, e a impunidade dos infratores. (Siqueria; Quinteiro, 2014, p. 24). Do ponto de vista jurídico, a definição do tráfico humano se concentra nas diversas finalidades a que se destina, conforme será analisado a seguir.
3.1 O CONCEITO DE TRÁFICO DE PESSOAS (CÓDIGO PENAL, ART. 149-A)
O conceito de tráfico de pessoas, conforme estabelecido no Protocolo de Palermo, abrange diversas condutas, incluindo recrutamento, transporte, transferência e alojamento de pessoas através de coerção, fraude ou abuso de vulnerabilidade para fins de exploração, que podem incluir exploração sexual, trabalho forçado, escravidão ou remoção de órgãos.
Inicialmente, o conceito de tráfico de pessoas estava limitado ao comércio de escravas brancas para exploração sexual, mas o Protocolo de Palermo ampliou essa definição para incluir outras formas de exploração além da sexualidade, como tráfico para fins laborais e tráfico de órgãos.
No Brasil, o Código Penal abordava o tráfico humano em relação à exploração sexual nos artigos 231 e 231-A, sem desvincular a sexualidade do crime. Houve mudanças legislativas ao longo do tempo, mas ainda se limitava a exploração sexual. A Lei nº 13.344/2016 introduziu o artigo 149-A para ampliar as possibilidades que caracterizam o tráfico de pessoas para além dos aspectos sexuais.
Apesar das legislações internacionais e do Código Penal brasileiro oferecerem garantias legais às vítimas, estas não foram suficientes para combater efetivamente o tráfico humano, uma atividade lucrativa que vai além da exploração sexual. A compreensão de que o comércio de pessoas engloba diversas formas de exploração levou a uma ampliação do conceito no ordenamento jurídico brasileiro.
O Brasil possui diversos meios legais para combater o tráfico humano, destacando-se o Protocolo de Palermo, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a Lei de Migração, o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, entre outros instrumentos normativos. Além disso, a Portaria 374 do Ministério da Justiça e Segurança Pública concede proteção às vítimas, oferecendo residência permanente e outros benefícios.
Kempadoo (2005, p. 57) discute duas correntes de pensamento sobre o tráfico humano: a feminista radical, que vincula o tráfico à prostituição como forma de opressão patriarcal, e a transnacional, que entende o tráfico como resultado de várias relações de poder, incluindo racismo e desigualdades internacionais.
Para Masson (2019, p. 239) é crucial que a comunidade internacional se comprometa com a melhoria das condições socioeconômicas dos grupos vulneráveis para combater efetivamente o tráfico de pessoas.
A definição de tráfico humano deve ser interpretada considerando o contexto histórico e social, visando proteger os direitos humanos, especialmente dos mais vulneráveis. A tendência é que essa definição se amplie para abordar de maneira mais abrangente as diversas formas de exploração.
3.2 DIREITO PENAL SEXUAL
O Direito Penal está intrinsecamente ligado à moral e tem como objetivo principal manter a paz social, tipificando condutas que causem impacto na sociedade de acordo com as normas morais predominantes. No entanto, Natscheradetz (1985, p. 66), não compreende que o direito e moral estão dentro de um circulo concêntricos. Traz o argumento que ambos são círculos independentes, em seus centros não estão interligados, apesar de que possa haver uma sobreposição de um em detrimento de outro em questões de cunho específico.
A evolução do Direito Penal em relação aos crimes sexuais é influenciada pela moral e pela história da sexualidade. Em civilizações antigas como Grécia e Roma, a homossexualidade era aceita, enquanto na Idade Média, as condutas sexuais eram reprimidas devido ao poder da religião. As revoluções liberais e a revolução sexual promoveram uma maior liberalização da sexualidade, contestando os valores morais patriarcais.
No Brasil, a legislação penal muitas vezes reflete uma carga moral significativa, especialmente em questões de gênero, homofobia, prostituição e pornografia. O crime de lenocínio, que envolve a exploração da prostituição alheia, é debatido na doutrina, com alguns autores questionando sua relevância em casos envolvendo adultos capazes e voluntários.
Para Rodrigues (2013, p. 25) a criminalização do lenocínio viola o direito constitucional à liberdade sexual, especialmente quando adultos escolhem voluntariamente se envolver em atividades sexuais remuneradas. Apesar de sua criminalização atualmente, na Roma antiga, o lenocínio era punido pela lei, especialmente quando envolvia a exploração de adultério por parte de um marido.
Hungria (1956, p. 266-267) definia lenocínio como prestar assistência à libidinagem de outrem ou dela tirar proveito. Fragoso (1959, p. 511) e Noronha (1943, p. 212) condenavam o lenocínio, enxergando-o como algo torpe. Para Bittencourt (2012, p. 156-157), Nucci (2010, p. 143) e Silveira (2008, p. 336) a criminalização do lenocínio não é necessária quando envolve vítimas maiores e capazes.
Durante a Idade Média, o rufianismo era punido severamente, podendo resultar até mesmo na pena de morte, e os rufiões eram frequentemente punidos com o castigo público de carregar nas costas a mulher prostituída. No Brasil, essa questão foi tratada nas Ordenações Filipinas e posteriormente no Código Penal de 1890, e atualmente é regulamentada no Código Penal de 1940, especificamente em seu artigo 230.
A compreensão do lenocínio, que pode ser considerado uma forma de rufianismo, é crucial para entender o tráfico humano, já que muitas vezes o tráfico visa facilitar a prática do lenocínio. A visão paternalista do sistema penal brasileiro é destacada, e críticas são feitas à criminalização de condutas baseadas apenas em sua reprovação social.
Roxin contribuiu para o Direito Penal ao enfatizar a importância de distinguir entre a moralidade pessoal e as ações que afetam a sociedade de maneira prejudicial. Segundo o Princípio da Ofensividade, o Direito Penal deve proibir apenas condutas que causem danos a bens jurídicos protegidos, não podendo criminalizar ações que não afetem a ordem pública.
Para Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 125) o princípio da ofensividade “está atrelado à concepção dualista da norma penal, isto é, a norma pode ser primária (delimita o âmbito do proibido) ou secundária (cuida do castigo, do âmbito da sancionabilidade)”.
A prostituição é muitas vezes estigmatizada pela sociedade e criminalizada em alguns países, embora em outros seja regulamentada como uma profissão. A doutrina espanhola define elementos para caracterizar a prostituição, incluindo a entrega sexual, o preço como retribuição, a promiscuidade e a habitualidade na prática de atos sexuais com parceiros diversos.
No contexto brasileiro, foram propostos dois projetos de lei para regulamentar a prostituição: o PL 98/2003, de autoria de Fernando Gabeira, que visava garantir que as profissionais do sexo fossem remuneradas, e o PL 4.211/2012, de autoria de Jean Wyllys, que buscava regulamentar a atividade.
Apesar da resistência do Brasil em conciliar direito penal e moral sexual, a Lei nº 12.015/09 representou um avanço ao classificar os crimes sexuais como contra a dignidade sexual, protegendo o bem jurídico da vítima. É crucial proteger o direito à intimidade da vítima, especialmente em uma sociedade ainda permeada por tendências machistas.
Atualmente, duas abordagens distintas sobre a prostituição coexistem: uma feminista, que a vê como exploração de gênero, e outra que a encara como uma forma de trabalho. Grupos internacionais, como o CATW e o GAATW, refletem essas perspectivas.
Apesar das divergências sobre a prostituição, é claro que é um problema social que requer uma abordagem cuidadosa do legislador brasileiro. A prática irregular da prostituição contribui para o tráfico humano, pois as vítimas sem regulamentação são mais vulneráveis à exploração.
3.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA
O tráfico humano tem raízes antigas, desde os tempos da Grécia e Roma, onde povos vencidos eram frequentemente escravizados. No período entre os séculos XIV e XVII, surgiram ideias de comercialização de seres humanos na região italiana, visando lucro financeiro. Durante as grandes navegações, o tráfico humano ganhou impulso devido aos desejos imperialistas das Coroas Europeias.
Na Roma antiga, havia diferentes formas de escravidão: escravidão por dívida, escravidão por sentença judicial e aquele por intermédio da venda dos donos, contribuindo para a desumanização dos escravos. Embora equiparado à escravidão atualmente, o tráfico humano não era considerado ilegal na época em que a escravidão era legal.
O comércio de escravos tinha como objetivo principal a exploração nas colônias, incluindo trabalhos domésticos, agrícolas e pecuários. A exploração sexual de escravas também era comum, embora não fosse tipificada como estupro, pois o crime de estupro só poderia ser aplicado a mulheres livres. Por exemplo, a escrava Hinorata, comprovadamente estuprada por seu senhor aos doze anos. Conforme destaca Paschoal (2004, p. 71-72) o referido crime ficou impune.
Após a abolição da escravidão no Brasil em 1888 reduziu o lucro do comércio de escravas negras, tornando-o ilegal. Isso levou a uma mudança na direção da exploração, agora voltada para mulheres brancas. O comércio sexual de mulheres ganhou força, especialmente com a participação ativa de países europeus. Buenos Aires e Rio de Janeiro tornaram-se centros importantes desse comércio na América do Sul, servindo como portas de entrada para vítimas do tráfico vindas da Europa.
Em 1933, foi estabelecida a Convenção Internacional relativa à Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, promulgada no Brasil em 1938. Em 1950, a Convenção para a Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio foi assinada e promulgada no Brasil em 1959, sendo a primeira a reconhecer que qualquer pessoa poderia ser vítima de tráfico humano.
Na década de 1970, Buenos Aires regulamentou a prostituição com uma política de tolerância, ao contrário do Brasil. Muitas mulheres migravam voluntariamente em busca de melhores oportunidades econômicas, mas acabavam vulneráveis à exploração após chegarem ao Brasil, devido à falta de perspectivas sociais e linguísticas.
Essas mulheres, muitas vindas de países como Rússia, França e Polônia, enfrentavam aliciamento e acabavam presas em uma situação de escravidão por dívida, onde suas dívidas eram pagas através da exploração sexual.
Em 2000, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Tráfico de Pessoas, foi aprovado e promulgado no Brasil em 2004. Além disso, diversos outros acordos internacionais foram estabelecidos, abordando a proteção contra o tráfico humano.
O Protocolo de Palermo, internalizado no Brasil em 2004, ampliou a proteção às vítimas de tráfico humano, reconhecendo diversas formas de exploração, não apenas a prostituição. O tráfico humano, sendo um comércio lucrativo, é uma prática transnacional que explora pessoas de países vulneráveis, muitas vezes vendendo-as em países mais poderosos. O controle menos rigoroso em relação a drogas ilícitas facilita esse mercado criminoso, onde as vítimas são tratadas como mercadorias.
Menezes (1997, p. 171-178) destaca que algumas características foram mantidas na prática do tráfico, enfatizando o caráter transnacional, o perfil vulnerável das vítimas, engodo durante o aliciamento, situação de escravidão por dívida no local de destino, entre outros.
4 O TRÁFICO DE PESSOAS PARA FIM DE EXPLORAÇÃO SEXUAL EM ÂMBITO INTERNACIONAL
No âmbito do contexto internacional, a busca pelo combate ao tráfico humano está intrinsicamente relacionada ao Protocolo de Palermo e seguidamente se aproxima da migração ilegal, uma vez que ambas as práticas geralmente acontecem no mesmo contexto.
A busca por melhores condições de vida em outros países é características das mulheres que são vítimas do tráfico humano. Assim, quando não conseguem serem traficadas, optam pela migração ilegal como forma de ingressar em outras nações, mesmo se tratando de países em que há uma forte e rigorosa política de acesso em suas fronteiras. Dessa forma, vale salientar que, em ambas as práticas as mulheres buscam por uma ascensão social.
4.1 DISTINÇÕES ENTRE TRÁFICO DE MIGRANTES ILEGAIS E TRÁFICO HUMANO
Apesar de compartilharem fatores semelhantes, como o envolvimento internacional, é fundamental distinguir entre tráfico humano e tráfico de migrantes ilegais. Ambas são abordadas por protocolos internacionais diferentes, com o tráfico humano tratado pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Tráfico de Pessoas, e o tráfico de migrantes ilegais tratado pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes.
Cabe ressaltar que na prática é muito comum essa confusão entre o traficado para o fim de exploração e o migrante ilegal. Num posto de fronteiro, por exemplo, não há como distinguir os dois casos sem a devida investigação. Assim, a vítima do tráfico é vitimizada novamente, podendo ser presa e deportada como simples migrante ilegal (Rodrigues, 2013, p. 73).
Enquanto o tráfico humano visa à exploração, incluindo sexual, laboral, e até mesmo de órgãos, o tráfico de migrantes ilegais busca facilitar a entrada ilegal em um país visando benefícios financeiros. As vítimas de tráfico humano são identificáveis e frequentemente coagidas, enquanto no tráfico de migrantes ilegais, o Estado é muitas vezes a principal vítima, perdendo o controle alfandegário.
Uma distinção importante é a forma de pagamento: no tráfico de migrantes, é acordado previamente e pago antes do deslocamento, enquanto no tráfico humano, o pagamento geralmente ocorre após a chegada ao destino. Além disso, o destino difere, com o tráfico de pessoas ocorrendo tanto nacionalmente quanto internacionalmente, enquanto o tráfico de migrantes ilegais envolve predominantemente deslocamentos internacionais.
4.2 ASPECTOS GERAIS DOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE COMBATE AO TRÁFICO HUMANO
O combate ao tráfico humano tem evoluído ao longo da história, acompanhando o desenvolvimento das sociedades e ganhando preocupação internacional. Do mercado de escravos antigos ao comércio de mulheres europeias no século XX e à exploração de seres humanos em todas as suas formas na atualidade, o tráfico humano é uma realidade complexa.
Destacam-se dois documentos importantes no enfrentamento desse problema: a Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, promulgada em 1959, e o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Tráfico de Pessoas, introduzido em 2004. Porém, o Protocolo de Palermo, parte da Convenção de 2000, foi pioneiro na definição exata do tráfico humano.
Embora tenha trazido avanços significativos, o Protocolo de Palermo enfrenta críticas, principalmente em relação à assistência às vítimas. Por exemplo, Jesus (2003, p. 403) aponta que as provisões de proteção e assistência são discricionárias, enquanto as policiais são mandatárias.
Uma crítica comum é a ausência de um mecanismo para denunciar violações ao Protocolo de Palermo por parte dos Estados-parte, dificultando o monitoramento eficaz das medidas estabelecidas. A Convenção da ONU foca mais na repressão do crime organizado do que na proteção dos direitos humanos das vítimas. Esse aspecto tem “consequências diretas na perspectiva adotada para a construção do conceito de tráfico, o qual possui um viés mais repressivo e não de proteção e de efetivação dos direitos humanos das pessoas envolvidas” (Dias; Sprandel, 2010, p. 155-170).
Embora não tenha uma finalidade específica de combate ao tráfico humano, a Convenção de São José da Costa Rica, como documento internacional de direitos humanos, desempenha um papel importante na coibição desse fenômeno.
5 A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO
A menção à teoria do domínio do fato é motivada devido à forma como o tráfico humano geralmente é conduzido por organizações criminosas demasiadamente coordenadas, com uma distribuição clara de funções entre os membros que a compõem. Greco (2012, p. 46) enfatiza que o enfoque legal deve se concentrar na figura do autor. Portanto, é crucial estudar as origens e a estruturação da teoria do domínio do fato.
5.1 ORIGENS
A teoria do domínio do fato teve suas origens na Alemanha, sendo mencionada pela primeira vez em 1915 por Helger, associada apenas aos fundamentos da culpabilidade. Foi somente em 1939, com Welzel, que a teoria começou a se concentrar na figura do autor.
Roxin, em sua obra de 1963, desenvolveu a teoria de maneira mais sólida, incorporando aspectos objetivos e subjetivos. Há o reconhecimento da teoria do domínio do fato ter um elevado grau de complexidade, não podendo “ser aplicada no varejo (ou no atacado)” (Streck, 2015, p. 103). Nesse sentido:
Roxin ressalta, por um lado, que a singular vagueza e a intangibilidade da concepção welzeliana levaram-no a rechaçar a ideia de domínio final do fato. Aliás, afirma que, no primeiro trabalho desenvolvido sobre a autoria, Welzel introduziu o conceito ‘de forma absolutamente repentina e sem explicação, como se seu significado fosse compreensível por si mesmo’. Por outro lado, Roxin considera que também a ‘unilateralidade dos critérios compreendidos de forma lógica e exata’ e a ‘sua incapacidade de satisfazer as diversas formas de manifestação da vida em 14 suas expressões individuais’ não servem como critérios para definir a ideia de domínio do fato (Aflen, 2014, p. 105).
Roxin é reconhecido por desempenhar um papel fundamental na formulação dos conceitos atuais da teoria do domínio do fato. Enquanto Welzel enfatizava uma natureza subjetiva, Roxin buscou refinar a teoria, tornando-a mais abrangente. No Brasil, a teoria do domínio do fato ganhou destaque no julgamento do mensalão, evidenciando sua relevância na identificação dos autores de crimes complexos, além da ação propriamente dita.
Apesar de estar prevista no ordenamento jurídico brasileiro, a teoria do domínio do fato não é amplamente utilizada nos tribunais brasileiros. Essa teoria é essencial para identificar não apenas os autores materiais, mas também os intelectuais de um crime, especialmente em organizações criminosas complexas, onde o autor pode ser aquele que menos executa a prática delitiva, sendo considerado o “homem de trás” (Leite, 2014, p. 59).
A Teoria do Domínio do Fato associa-se à imagem do autor, ligando-se ao animus actoris, ou seja, à vontade do agente em participar de uma organização criminosa. No entanto, no Código Penal Brasileiro, essa teoria mostrou-se insuficiente, pois não diferencia claramente autor e partícipe, cabendo à doutrina essa distinção.
Diversas teorias surgiram para abordar essa questão, como a Teoria Subjetiva/Unitária, que não faz essa distinção; a Teoria Extensiva, que estabelece graus de autoria e considera a relevância do ato praticado; e a Teoria Objetiva/Dualista, que diferencia autor e partícipe. No Brasil, adota-se a Teoria Objetivo-Formal, onde o autor é quem pratica o verbo nuclear do tipo penal.
A Teoria do Domínio do Fato, por sua vez, caracteriza-se por uma maior amplitude na compreensão do autor. Enquanto alguns a apoiam, outros a repudiam. No julgamento da Ação Penal 470, houve controvérsia sobre sua aplicação. O Ministro Celso de Mello defendeu sua aplicabilidade, afirmando que ela pode coexistir com outras teorias. Já o Ministro Ricardo Lewandowski discordou, expressando preocupação com uma eventual banalização da teoria e a necessidade de estabelecer parâmetros precisos para sua aplicação.
A aplicação da teoria do domínio do fato em casos práticos é dificultada pela sua complexidade. Resumidamente, essa teoria estabelece que o autor pode ser: 1) quem executa o núcleo do tipo por sua própria vontade (autor propriamente dito); 2) quem planeja a empreitada criminosa para ser executada por outras pessoas (autor intelectual); 3) ou quem se vale de uma pessoa não culpável para executar o tipo, usando-a como instrumento (autor mediato).
Somente poderá ser autor de um delito de domínio (Tarherrschaftsdelikte) aquele que se possa afirmar que é a figura central da conduta criminosa, quem decide se e como será realizada. Assim, o domínio do fato pressupõe um conceito aberto, que não se estrutura em torno a uma imperfeita definição ou fórmula abstrata, mas sim de uma descrição (Beschreibung) que se ajusta aos vários casos concretos. Este conceito aberto complementa-se com uma série de princípios orientadores. Autor de um delito é aquele que pode decidir sobre aspectos essenciais da execução desse delito, o que dirige o processo que desemboca no resultado. Adota-se um critério material que permite explicar mais satisfatoriamente as diversas hipóteses de autoria e participação. Nos delitos de domínio, o tipo descreve a ação proibida da forma mais precisa possível (o domínio do fato sempre se refere ao tipo). Trata-se de um domínio considerado em sentido normativo (com relação à imputação objetiva) e não de uma perspectiva naturalística (como mero domínio de um processo causal) (Olivé; Paz; Oliveira; Brito, 2011, p. 538-539).
Tomando como exemplo o entendimento de Ordeig (2012, p. 106), a teoria do domínio do fato é compatível apenas com aqueles crimes considerados dolosos. Pois, entende-se que os crimes caracterizados como culposos, mesmo que resultem uma determinada lesão, não tiverem a intenção de provocar o resultado pelo o agente.
Bittencourt (2012, p. 382), traz distinções acerca de autor citados pelas doutrinas alemãs. Dessa forma, o autor compreende que, nos crimes configurados como dolosos, o conceito de autor fica mais restritivo, que se basearia nessa teoria, diferentemente dos crimes culposos, em que usaria a teoria unitário do autor, que não a distinção de autor e partícipe.
5.2 APLICABILIDADE AO TRÁFICO HUMANO
O crime de tráfico humano, ao longo da história, evoluiu em suas formas, tornando-se mais organizado e complexo, o que dificulta seu combate. A teoria do domínio do fato é relevante para abordar as diversas esferas de atuação do autor desse crime. Para Roxin o autor pode ser quem executa a ação, quem faz executar o crime por outro sob coação, ou quem exerce controle final sobre o fato.
Uma organização criminosa é uma empresa especializada em atividades ilícitas. Dentre as características principais, deve ser observada a grande especialização dos atos criminosos, a estratégia global, a flexibilidade, a profissionalização e a sofisticação.
A evolução legislativa sobre o crime organizado inclui a Lei n. 9.034/95, que não trouxe uma definição precisa, e a Convenção de Palermo, que define um grupo criminoso organizado como um conjunto de três ou mais pessoas agindo de forma coordenada para cometer infrações graves visando obter benefício econômico.
Greco Filho (2009) criticou a falta de definição clara de organizações criminosas na Lei 9.034/1995. Ele discordou também do conceito trazido pelo Protocolo de Palermo, argumentando que deveria ser mais flexível. A Lei 12.964/2012 introduziu uma definição de organização criminosa associada a uma vantagem de qualquer natureza, sem se limitar ao aspecto econômico. A Lei 12.850/2013 definiu formalmente uma organização criminosa como um grupo de quatro ou mais pessoas estruturadas para cometer crimes com penas máximas superiores a quatro anos.
“A prática do tráfico humano é realizada de forma que tem um caráter transnacional, em que se percebe que há maiores chances de aumento em razão da fragilidade das fronteiras ocasionadas pela globalização” (Carneiro, 2009, p. 50). O tráfico humano, frequentemente transnacional, é facilitado pela globalização e pelas vulnerabilidades das fronteiras, especialmente na região Norte do Brasil.
Na floresta amazônica, que em maior ou menor proporção cobre sete Estados da região Norte do Brasil, muitas vezes é a geografia que determina as rotas internas e internacionais de exploração de crianças e adolescentes. O Rio Amazonas tornou-se um marco divisor. Para quem vive abaixo do Amazonas, fica mais demorada, cara e perigosa uma investida aos países acima da linha do Equador. Daí sujeitar-se à opção mais rápida e barata das fronteiras com a Bolívia, onde se ganha menos dinheiro e as privações são bem maiores (Siqueira; Quinteiro, 2013, p. 171).
Organizações criminosas recrutam pessoas vulneráveis e as transportam para diferentes locais, como São Paulo, explorando sua situação.
Alguns mandam recrutadores ou têm acordos com cafetões ou cafetinas no local para procurar potenciais candidatos. Eles procuram menos efeminados vulneráveis e carentes, menores e adultos trans e oferecem a oportunidade de ir para São Paulo. Facilitam o transporte, pagando a passagem, normalmente de ônibus (Siqueira; Quinteiro, 2013, p. 122).
A associação histórica entre tráfico humano e crime organizado remonta ao século XIX, com grupos como a Zwig Migdal, conhecidos por sua crueldade no tratamento de escravas e membros. Embora tenha sido fechada em 1930, sua existência era questionada por alguns, como Hungria (1956).
As organizações criminosas, muitas vezes visando lucros materiais, podem estar envolvidas no tráfico humano, embora inicialmente esse crime não tenha sido reconhecido como antecedente à lavagem de dinheiro. Jesus (2003, p. 63-68) via dificuldades na aplicação da lei de lavagem de dinheiro devido à falta de uma definição clara de organizações criminosas. Algumas correntes, como a de Marco Antônio de Barros, defendiam incluir o tráfico de pessoas como crime antecedente à lavagem de dinheiro.
As organizações criminosas envolvidas no tráfico humano possuem uma estrutura sofisticada, com divisão clara de tarefas e hierarquia. Os traficantes exercem papel autor-intelectual do crime, além de terem controle funcional e de vontade sobre suas ações. Greco Filho (2009, p. 292-293) identifica vários requisitos para uma organização criminosa, incluindo estrutura organizacional, especialização de tarefas e conexões com outras organizações.
Essas organizações se dividem em camadas, com diferentes funções em níveis estratégico, tático e operacional. A teoria do domínio do fato é essencial para entender essa relação entre organizações criminosas e tráfico humano, servindo como base teórica para a operação dessas organizações, que facilitam o tráfico humano.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tráfico humano, independentemente da sua extensão geográfica ou das suas vítimas em potencial, configura um fenômeno a ser debatido não só no âmbito nacional como também no internacional. Além de ferir direitos humanos imprescindíveis às vítimas, a exemplo da segurança, da liberdade, da integridade física, dentre outros, ainda dá vazão a diversas outras práticas criminosas, como estupros, aliciamento de menores, além da formação de organizações criminosas que, dada a sua organicidade, mostram-se praticamente inatingíveis pelos órgãos de controle nacional e internacional.
Urge destacar o caráter dinâmico do tráfico humano, seja em razão de sua legislação, que está em constante adequação às contingências sociais seja em razão das vítimas que geralmente são atingidas por tal prática, muitas predominantemente negras e pobres, em todas as idades imagináveis, conglobando inclusive crianças.
Diante de tal cenário, fez-se pertinente introduzir esse tão complexo tema a partir de uma abordagem histórica, com o fito de identificar a partir de estudos doutrinários a gênese tanto da prática do tráfico em si quanto da sua concentração em vítimas socialmente vulneráveis. O ordenamento jurídico pátrio, apesar da sua deficiência, tem apresentado substancial evolução no sentido de amparar a verdadeira vítima do tráfico humano.
Inicialmente, priorizava a proteção de mulheres brancas europeias, limitando-se apenas ao tráfico sexual. Posteriormente, expandiu-se para salvaguardar a mulher em si, independentemente da etnia ou da condição social, de maneira a finalmente incluir as mulheres negras e pobres. Por fim, passou a abranger a proteção do ser humano de forma universal, desconsiderando gênero ou etnia.
Além disso, dessa vez não mais se considerou apenas o tráfico sexual em si, embora este seja o mais comum, ponderando-se também a existência de outras modalidades de tráfico, a exemplo do tráfico de órgãos, do tráfico laboral etc., em que pese tais modalidades não hajam sido objeto de estudo na pesquisa em apreço.
Diante desse cenário, fez-se oportuno trazer à baila uma discussão a respeito do chamado direito penal sexual. Noutros termos, ponderou-se a existência de um Direito que sempre se deixou amordaçar pela moral sexual vigente em cada época para deixar de proteger alguns grupos sociais, como é o caso das prostitutas, homossexuais, travestis e congêneres, os quais, dado esse total descaso do Poder Público, tornaram-se vítimas pontuais na prática do tráfico humano.
É notório que o Direito, numa via de mão-dupla, deriva da moral, no entanto, esta não pode justificar o descaso em relação a certos grupos por estes divergirem da moral predominante, eleita como socialmente aceitável.
De mais a mais, na órbita internacional, é salutar garantir o protagonismo da Convenção de Palermo como principal instrumento de combate ao tráfico humano, a qual foi responsável por mobilizar a legislação de diversos países, no sentido de não apenas punir o tráfico sexual, mas também todas as formas de tráfico.
Foi a partir do seu advento que o tráfico humano passou a ser alvo de preocupação da comunidade internacional, pois, além de ser uma prática repugnante que em muito se assemelha a uma forma de escravidão moderna, é a principal prática atualmente responsável pela coisificação do ser humano, fenômeno esse inadmissível em meio a todo o aparato internacional orquestrado com o fim de proteger os direitos humanos.
Outrossim, dados os aspectos históricos e legislativos a respeito do tráfico humano, sob uma perspectiva geral, houve a sua contextualização com a teoria do domínio do fato, teoria essa edificada no estudo do concurso de agentes e que tem se mostrado como principal ferramenta para explicar os grupos criminosos organizados.
Graças à visão holística que essa teoria deu à noção de autor, foi possível criar mecanismos para desvelar o funcionamento das organizações responsáveis por dar continuidade ao tráfico humano, as quais são marcadas por uma percuciente hierarquia, além de uma clara distribuição de funções, mas, acima de tudo, são lideradas por indivíduos com alto poder persuasivo e aquisitivo, além de astúcia suficiente para se esquivar da ação das instâncias de persecução penal.
O combate ao tráfico humano se mostra eficaz não só a partir do robustecimento da legislação aplicável, como também na compreensão de que tal fenômeno tem raízes históricas calcadas no preconceito social e racial, de forma que, assim como à época da escravidão, tende a se perpetrar em meio a discursos autoritários, baseados em valores morais deturpados que de forma velada visam a alijar socialmente grupos indesejáveis e cuja prosperidade não é do interesse dos setores dominantes do poder.
A partir de tal abordagem histórico-social, evita-se a precarização de tais grupos de maneira a não os tornar vítimas em potencial não só do tráfico humano, como também de outras condutas atentatórias à dignidade humana.
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[1] Doutora em Ciência Jurídica pela UNIVALI-SC. Mestre em Direito pela UNIPAR-PR. Especialista em Direito Tributário pela UnP-RN. Pós-Graduada em Direito Constitucional pela UVB-SP. Graduada em Direito pela TOLEDO-SP. Professora Associada I do Departamento de Ciências Jurídicas, do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Professora de Direito Processual Civil do DCJ/CCJ/UFPB. Orientadora. Conferencista. Conselheira Editorial. Pesquisadora. Advogada. Consultora Jurídica. E-mail: carol.couto2023@gmail.com.