RESPONSABILIDADE CIVIL NO ABANDONO AFETIVO INFANTIL: UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO
20 de dezembro de 2023CIVIL LIABILITY IN THE CHILD AFFECTIONAL NEGLECT: AN ANALYSIS IN THE LIGHT OF THE BRAZILIAN LAW CODE
Artigo submetido em 15 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 19 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 20 de dezembro de 2023
Scientia et Ratio Volume 3 – Número 4 – Dezembro de 2023 ISSN 2525-8532 |
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Autor: Millena Luciana Lemos Gomes Bello[1] |
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RESUMO: O presente trabalho tem por escopo abordar a respeito da responsabilização civil dos pais em decorrência do abandono afetivo para com os filhos. Com este propósito, será inicialmente abordado como a Constituição de 1988 trouxe uma grande evolução ao Direito de Família, tratando o vínculo familiar não pelo laço matrimonial, mas pelo afeto das relações familiares e suas múltiplas formações, além de introduzir a importância do cuidado e proteção à criança e ao adolescente. Destarte, é importante ressaltar que a presente pesquisa se fixará em uma análise de estudo de caso das relações dos pais com seus filhos, de maneira que as outras relações familiares não serão aqui aprofundadas. Dando continuidade, será tratado a respeito da imprescindibilidade dos princípios constitucionais no Direito de Família, subdividindo-os em princípios fundamentais e gerais. Posteriormente, passarão a ser analisados os deveres dos pais e a importância de um bom convívio familiar para a construção da personalidade e garantia de pleno desenvolvimento para os filhos. Por fim, para que se culmine no ponto principal de discussão deste trabalho monográfico, qual seja: a condenação ao pagamento de indenização por danos morais em virtude do abandono afetivo infantil, é de suma importância conhecer a essência do abandono, em foco o abandono paterno-filial, além de realizar uma análise a respeito da Responsabilidade Civil aplicada ao direito familiar, alicerçado no entendimento jurisprudencial do ordenamento jurisdicional brasileiro.
Palavras-chave: Abandono Afetivo; Direito de Família; Responsabilidade Civil; Família.
ABSTRACT: The present work aims to approach the civil liability of parents due to affectional neglect towards their children. Therefore, it will discuss how the 1988 Constitution brought great progress to Family Law, viewing the family bonds not through legal marriage, but for the sake of affection itself, within the familiar relationships and their multiple settings, besides introducing the importance of care and protection to the child and adolescent. Thus, it is important to stand out that the present research will stick to the analysis of a study case regarding the relationship father and child and other relationships will not be talked over. As a follow-up, some considerations will be made about the necessity of applying the constitutional principles in the Family Law, dividing them into fundamental principles and general principles. Eventually, the duties of the parents and the importance of maintaining a good relationship among family members to build the personality and guarantee the full development of the children will be discussed. Ultimately, in order to reach the main goal of this final paper, which is discuss the conviction of payment of indemnity for moral damages due to child affective neglect, it is vital to know the essence of the abandonment, more specifically from the father. In addition to it, an analysis of the civil liability applied to Family Law will be made, based on the comprehension of the jurisprudence within the Brazilian Legal Order.
Keywords: Affectional neglect; Family Law; Civil liability; Constitution.
1 INTRODUÇÃO
A família é o pilar fundamental da sociedade, maior que qualquer outra instituição social, pois carrega consigo o compromisso para com o futuro da nova geração. Nela encontra-se o espaço mais pluralizado para a existência do ser humano e de integração social. Isto posto, o presente trabalho visa averiguar se o ordenamento jurídico pátrio permite a existência da responsabilização dos genitores em decorrência do abandono afetivo para com seus filhos.
Enquanto a sociedade atual entende o afeto como fator essencial para o desenvolvimento do ser humano e levando-se em consideração a natureza dos deveres jurídicos dos pais para com os filhos, sem desconsiderar o fato de que o amor ou o afeto não são características exigíveis a outrem, surge a indagação: Para o Direito brasileiro, os efeitos da quebra do vínculo afetivo paterno-filial seria considerado fato gerador para a responsabilização civil e para reparação de danos morais e psicológicos?
Destarte, é válido salientar que o fenômeno a ser analisado é uma realidade habitual na sociedade, tendo em vista que todo mundo conhece ao menos um caso em que os filhos ficam carentes de afeto por parte de um dos genitores – ou até mesmo de ambos – seja em virtude da separação do casal de genitores ou pelas mais diversas situações que envolvem pais, mães e avós solos. Contexto em que, até pela imposição e sanção legal imposta, é comum ter genitores que cumprem com a obrigação alimentícia, mas que pecam com relação ao suprimento afetivo na vida e no desenvolvimento da criança ou adolescente.
Contudo, no campo jurídico, o debate a respeito da ocorrência do abandono afetivo paterno-filial e das possíveis consequências jurisdicionais para aqueles que cometem o ato ainda se manifesta como uma inovação no mundo jurídico. Neste contexto, a presente pesquisa se caracteriza como sendo de natureza qualitativa, de caráter descritivo, com o emprego de pesquisa documental, apoiando sua fundamentação teórica em bibliografias jurídicas, em consonância com o aparato legal e em análise jurisprudencial. Buscar-se-á analisar a viabilidade da condenação ao pagamento de indenização dos danos originados pelo abandono afetivo dos genitores para com a sua prole.
Para tal, o primeiro capítulo da pesquisa em tela fará um breve estudo do desenvolvimento do Direito de família à luz da Constituição, buscando compreender a evolução do entendimento a respeito do elo que compõe instituição familiar e da legislação de proteção a esta instituição. No segundo capítulo serão abordados os princípios constitucionais do Direito de Família como instrumentos norteadores para a compreensão do que seja um sistema jurídico e a análise principiológica como meio de extrema importância para que se verifiquem as mudanças de paradigma da matéria, pautado no elemento central constitutivo do afeto como vínculo maior das relações familiares.
No terceiro capítulo, serão analisados os deveres dos pais e a importância do convívio familiar para a construção da personalidade dos menores a partir de um entendimento a respeito do poder familiar, tratando sobre os impactos gerados pela negligência afetiva e da imprescindibilidade do afeto na formação destes seres humanos em desenvolvimento.
Dando continuidade, será tratado, no quarto capítulo, a respeito do conceito do abandono afetivo e como este se aplica na perspectiva dos deveres familiares, bem como será analisada a responsabilização civil ao ato ilícito e os pressupostos para sua constituição, além de se abordar o seu enquadramento no âmbito do abandono afetivo infantil brasileiro.
O capítulo derradeiro tratará a respeito da perspectiva da jurisprudência e das decisões judiciais quanto à responsabilidade civil do abandono afetivo paterno-filial. Visando demonstrar o cabimento da intervenção do Estado a fim de assegurar o direito a um desenvolvimento saudável das crianças e dos adolescentes quando este ficar defasado pela negligência familiar em proporcionar um ambiente afetuoso, com dignidade e respeito.
2 O DIREITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1988
“A família é a base da sociedade”, artigo 226 da Constituição Federal (Brasil,1988). Ao longo dos anos, a instituição familiar passou por uma grande evolução social, deixando de ser entendida, pela visão do sistema patriarcal, como uma unidade familiar que se compunha unicamente através das relações advindas do laço matrimonial e passando, à luz da CF/88, a ser entendida através das relações de afeto e respeito existentes entre os membros da estrutura familiar, nas mais diversas composições familiares atualmente adotadas.
É importante ressaltar que a presente pesquisa se fixará na análise da relação dos pais com seus filhos, de maneira que as outras relações familiares não serão aqui aprofundadas. Bem como é imprescindível destacar que o direito de família e a proteção das crianças e adolescentes deram um grande salto ao longo da evolução do ordenamento jurídico pátrio, sendo uma das maiores revoluções no direito brasileiro.
Partindo dessa máxima, a Carta Magna, em seu artigo 227 (Brasil, 1988), prevê o dever do Estado, da família e da sociedade em zelar pela dignidade da pessoa da criança, quando estipula o dever de assegurar a este o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Ou seja, incumbem, aos agentes mencionados, o dever comum de impedir que as crianças e adolescentes sejam ou venham a ser expostos a toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, exploração, opressão ou crueldade.
Assim, a responsabilidade dos pais pelo dever de assistência aos filhos, presente na Constituição, apenas reforça o dever imposto na legislação infraconstitucional em seus artigos 1579, 1632, 1636 CC (Brasil, 2002).
Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos. Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar restrições aos direitos e deveres previstos neste artigo.
Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.
Art 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro. Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável. (Brasil, 2002).
De modo que o surgimento das novas estruturas familiares advindas do fim da sociedade conjugal, jamais deve implicar no fim da relação paterno-filial, conforme a citação de Maria Berenice Dias: “A convivência dos filhos com os pais não é um direito dos pais, mas do filho” (Dias, 2007, p. 407), não sendo assim um direito do genitor que não detém a guarda de visita ao menor, mas uma obrigação em fazer.
Nesta ordem de ideias, é possível compreender, na existência de uma relação de hipossuficiência das crianças e dos adolescentes menores para com os seus genitores, a necessidade de um aparato legal que possibilite a igualdade desta relação. A esse despeito a Lei 8.069/90 – ECA (Brasil, 1990), regulamentou os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente.
Dada a evolução das relações familiares, como aqui já exposto, é de extrema importância que se faça um estudo dos princípios e de como eles são o âmago axiológico de inspiração para o sistema jurídico familiar, sendo cada vez mais imperiosa a aplicação do entendimento principiológico para resolução de conflitos, uma vez que a celeridade evolutiva da sociedade moderna está em descompasso com a evolução do código existente.
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA
Os princípios são instrumentos norteadores para a compreensão do que seja um sistema jurídico e a análise principiológica constitucional e, atinentes ao tema, é de extrema importância que se verifiquem as mudanças de paradigma da matéria, conferindo a esta os alicerces fundamentais para sua proteção.
É oportuno registrar que abordaremos os princípios aplicáveis ao direito de família, com base no entendimento doutrinário de Paulo Lôbo, que os subdivide em Princípios Fundamentais, quais sejam: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade, e os Princípios Gerais, que abrangem a igualdade, liberdade, afetividade, responsabilidade, convivência familiar e princípio de melhor interesse da criança e do adolescente.
- PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Disposto no artigo 1º, III da Carta Magna, o princípio da dignidade humana é tido como um macroprincípio, servindo de parâmetro para aplicação, interpretação e integração para todo o ordenamento jurídico. Valendo ainda dizer que, independentemente de suas particularidades, a dignidade de uma pessoa é inquestionável para todo e qualquer ser humano. Segundo Flávia Piovesan:
Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana. (Piovesan, 2005, p. 188)
Previsto no inciso I do artigo 3º da CF/88, o princípio da solidariedade tem por objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. No âmbito familiarista, este se projeta como o vínculo de sentimento de apoio e ajuda presente na relação do núcleo familiar, principalmente quanto à assistência moral e material.
Desenvolve-se no âmbito do direito de família estudos relativos ao ‘cuidado como valor jurídico’. O cuidado desponta com força nos estatutos tutelares das pessoas vulneráveis, como a criança e a pessoa idosa, que regulamentaram os comandos constitucionais sobre a matéria. (Lôbo, 2023, p 29)
Neste sentido, o cuidado, sob o ponto de vista do direito, recebe o valor jurídico sob força do princípio da solidariedade e estes encontram-se intrinsecamente ligados ao da dignidade da pessoa humana.
- PRINCÍPIOS GERAIS
Tendo em vista a natureza multicultural de nossas sociedades contemporâneas, o princípio da igualdade art. 4º, VII, da CF/1988 gerou profundas alterações no direito de família ao declarar a igualdade entre homens, mulheres, entre os filhos (independentemente de sua origem) e entre as diferentes formações de entidades familiares. Conforme mencionado anteriormente e com base no entendimento de Dias, discorre que:
O conceito atual de família é centrado no afeto como elemento agregador, e exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade. A enorme evolução das ciências psicossociais escancarou a decisiva influência do contexto familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação. Não se pode mais ignorar essa realidade, tanto que se passou a falar em paternidade responsável. (Dias, 2015, p. 164)
Partindo, assim, deste entendimento, temos que atualmente o conceito de família está muito mais relacionado ao fator social do afeto do que à estrutura de constituição da família, tradicionalmente composta por homem e mulher, sendo de extrema importância o princípio da liberdade para assegurar a livre constituição da vida familiar.
Outrossim, é imprescindível tratarmos do princípio da afetividade para a construção do entendimento teórico deste trabalho, pois refere-se ao único elo que mantém as pessoas unidas nas relações familiares. De modo que, a partir do momento em que o afeto é elevado a princípio, este se torna diretriz para o Direito de Família, bem como tem-se a possibilidade da responsabilização civil dos genitores que afetivamente abandonam os seus descendentes.
Em decorrência do princípio da afetividade, temos a responsabilidade na família como um princípio pluridimensional que não se tange unicamente a atos de natureza negativa do passado, mas trata-se da responsabilidade assumida pelos pais perante a criação e acompanhamento contínuo, com a premissa de uma convivência digna e desenvolvimento pessoal baseado no respeito e no afeto.
Coadunando com o Estatuto da Criança e do Adolescente que permite a proteção integral desses filhos perante seus pais, prevendo em seu artigo 3º o que segue:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (Brasil, 1990).
Por fim, temos o princípio a convivência familiar, que tutela o direito a uma relação afetiva duradoura estabelecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar em virtude de laços de parentesco ou não, garantindo que a convivência não se esgota com o fim da chamada família nuclear, haja visto resguardar o princípio do melhor interesse da criança, que preceitua colocá-los a salvo de qualquer forma de negligência, pelo Estado, pela sociedade e pela família, como pessoa em desenvolvimento e dotada de dignidade.
4 DEVERES DOS PAIS E A IMPORTÂNCIA DO CONVÍVIO FAMILIAR PARA A CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE
Para tratar do dever dos pais é necessário compreender o que a doutrina entende por poder dos pais na estrutura familiar para tal, conforme conceito preconizado pela autora Maria Helena Diniz, em sua obra “Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família”:
O poder familiar pode ser definido como um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. (Diniz, 2022, p. 202)
A discussão da paternidade responsável, na perspectiva do poder familiar, se dá na responsabilidade dos pais para com os filhos, enquanto expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da afetividade enquanto valores jurídicos norteadores. Sendo o poder familiar, ou autoridade parental na doutrina majoritária, um dever irrenunciável, inalienável e imprescritível, seja ele advindo da paternidade natural, da paternidade legal (adoção) ou da socioafetiva, conforme estabelecido no artigo 1.579 do CC (Brasil, 2002).
Razão pela qual este poder é conferido simultânea e igualmente a ambos os genitores, visando garantir, à criança ou adolescente menor, o direito de conviver com a sua família independentemente do estado civil em que os seus genitores se encontrem, não permitindo que os problemas pessoais reverberem na relação familiar, ou seja, a ausência de coabitação sob o mesmo teto entre pais e filhos não restringe e nem exclui o poder-dever.
Deste modo, trataremos no próximo tópico a respeito da importância do afeto como garantia ao desenvolvimento saudável na formação do ser humano, primando pela convivência como um investimento no futuro da relação paterno-filial, que vai muito além da previsão ou temor legal, sendo uma questão de fortalecimento dos vínculos de afeto e consequentemente garantia de respeito aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
4.1 A IMPRESCINDIBILIDADE DO AFETO NA FORMAÇÃO DO SER HUMANO
A família é o pilar da afetividade, pois é no seio familiar onde o indivíduo em formação busca encontrar referências, carinho e proteção para o desenvolvimento da sua personalidade. Nesta tocante, os pais possuem grande responsabilidade para com os filhos, visto que estes se encontram em situação de vulnerabilidade pela idade.
Portanto, não se trata apenas de amparo material, mas também, do amparo emocional tão necessário ao pleno desenvolvimento de todos os âmbitos da vida do infante, que pode sofrer consequências destoantes pela ausência do cuidado devido, consequências estas que ferem o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Tal temática é extremamente subjetiva, fazendo-se necessário, para um melhor entendimento da temática, o diálogo do Direito e da Psicologia através dos ensinamentos da Lisandra Espíndula Moreira e Maria Juracy Filgueiras Toneli (2015):
O convívio familiar passa a ser descrito, não apenas pela coabitação, mas pela determinação de práticas afetivas. A definição desse direito da criança não se restringe à satisfação das necessidades dos filhos, mas, sustentada pelo saber psi, avança para a prescrição de relações cotidianas suficientemente adequa das do ponto de vista psíquico. (Moreira; Toneli, 2015, p.5)
Assim, sob a visão das Psicólogas Debora Rickli, Fabiola Bini Belin e Luana Lustoza em suas pesquisas acadêmicas, a afetividade dos pais para com os filhos “se constitui conforme as influências que os pais tiveram em sua própria infância, o que influencia e determina a maneira que cada um irá exercitar sua parentalidade” (Fiuza; Belin e Lustoza, 2022, p. 7). Nesse cenário, é importante compreender que é na infância que o afeto possui muito mais relevância no desenvolvimento da vida das crianças e quanto mais afeto nesta fase, maior será a qualidade de vida familiar, pois é nesse ponto onde ocorrem os primeiros contatos sociais e as primeiras interações que irão determinar a forma de se relacionar com o outro.
No entanto, o conceito que envolve maternidade e paternidade não se restringe à capacidade biológica da concepção. É, em suma verdade, um compromisso social, em que ser atencioso e zelar pelo seu filho, na atualidade, muitas vezes consiste em, por exemplo, presenteá-lo com um aparelho telefônico de última geração, trocando os momentos de diálogo e conversas físicas pelo virtual (aplicativos de bate-papo), tornando perceptível que a vivência familiar deficiente é, em alguns momentos, até inexistente. Vale ainda salientar que o uso intenso das ferramentas digitais pode implicar em abandonar sujeitos vulneráveis e de necessidade de formação constante.
Neste contexto, a parentalidade afetiva exercida de forma responsável se mostra importante para que se tenham seres humanos com menos traumas e problemas psicológicos em razão da falta de afeto, conforme entendimento de Diniz (2022):
Ambos têm, em igualdade de condições, poder decisório sobre a pessoa e bens de filho menor não emancipado. Se, porventura, houver divergência entre eles, qualquer deles poderá recorrer ao juiz a solução necessária, resguardando o interesse da prole (CC, art. 1.690, parágrafo único). […]Com o escopo de evitar o jugo paterno-materno, o Estado tem intervindo, submetendo o exercício do poder familiar à sua fiscalização e controle ao limitar, no tempo, esse poder; ao restringir o seu uso e os direitos dos pais. (Dias, 2022, p. 202, grifos da autora).
É pertinente ressaltar a importância de uma família afetiva, preocupada com o desenvolvimento físico, psíquico e emocional de sua prole, bem como sua obrigação em se fazer presente durante este desenvolvimento, prestando o suporte adequado para que os filhos desenvolvam condições de se tornarem entes psicologicamente estruturados. Ou seja, o abandono afetivo enseja uma violência contra a criança e o adolescente, visto que há uma situação de vulnerabilidade decorrente da idade que possuem, ao mesmo tempo em que a figura que deveria representar amor e proteção acaba por negligenciar cuidados e afeto, o que gera prejuízos psicológicos para os menores (Borges et. al., 2021). Com isso, temos plena capacidade de valorar o que o afeto significa e as consequências que a sua falta acarreta, na vida e no desenvolvimento dos infantes.
5 CONCEITO DO ABANDONO AFETIVO NA PERSPECTIVA DOS DEVERES FAMILIARES
Como anteriormente dito, a família contemporânea se baseia no sentimento, questão relevante para a presente pesquisa. Nesta seara, é importante que se compreenda o significado axiológico da palavra abandono. Conforme informações do dicionário Aurélio, é descrito como: “Abandono: Significado. ato ou efeito de abandonar, largado, desamparado” (Aurélio Digital, 2023). Deste modo, temos o abandono afetivo como o não cumprimento do dever de convivência, interação e cuidado para com o filho. Podendo ou não vir acompanhada de abandono material.
Levando-se em conta a natureza dos deveres jurídicos dos pais para com os filhos e o alcance do princípio jurídico da afetividade, além de considerar a natureza laica do Estado de Direito brasileiro, na qual entende-se não ser possível se obrigar o amor ou o afeto às pessoas. O conceito jurídico de abandono afetivo não se relaciona ao sentimento de afeto, já que este não é ser exequível, afinal de contas o amor não se exige.
O abandono afetivo que trataremos aqui é o abandono imaterial, é a indisponibilidade do dever de cuidado imposto por princípios e regras do ordenamento jurídico pátrio, ou seja, é a omissão paterna como elemento propulsor do abandono afetivo. Conforme Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017), “não há razão que assista um pai ou uma mãe de abandonar afetivamente um filho”. Porém, é plenamente possível, sim, que os genitores, ou um deles, não possuam condições financeiras de apoiar plenamente seus filhos. Contudo, no que tange ao afeto, não há como justificar essa ausência. Sendo deste modo princípio basilar da relação familiar a proteção e o cuidado para com a prole.
Isto posto, podemos concluir que o conceito de abandono afetivo tratado na responsabilidade civil não se caracteriza pela imposição do afeto, mas está diretamente ligado com o inadimplemento do dever de cuidar e prestar assistência a um pleno desenvolvimento do filho, dever este, positivado em nosso ordenamento jurídico, não sendo, portanto, correlato com a existência ou não de sentimento de afeto na relação familiar.
- RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL NO ÂMBITO DO ABANDONO AFETIVO INTANTIL NO BRASIL
A Responsabilidade Civil está diretamente ligada ao princípio normatizado na CRFB/88 (Brasil, 1988), neminem laedere (não lesar a ninguém), impondo a todas as pessoas os deveres jurídicos fundamentais de respeito e bem de outrem, ao passo que estabelece sanção ao responsável civil em forma de reparação dos danos causados, com previsão jurisdicional nos artigos 186, 187, 924 e 927 do Código Civil (Brasil, 2002). Há de se considerar, ainda, que a responsabilização por dano afetivo é matéria relativamente nova nos tribunais, e poucas doutrinas são encontradas neste sentido.
Neste contexto, para que se tenha a reparação civil é necessário que se preencha os requisitos inerentes a este, tais quais: a conduta, que se refere ao ato de agir contrariamente a uma obrigação legalmente ou contratualmente exigida, ou ainda, ao ato de deixar de fazê-lo. O dano, que segundo Maria Helena Diniz (2007. p. 62), trata-se do prejuízo ressarcível, em qualquer bem ou interesse jurídico, seja ele material ou moral, na forma de compensação à vítima e de “punição” ao agressor, com o intuito de que este não volte a causar dano a outrem.
A despeito do nexo de causalidade, Flávio Tartuce, no livro Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, diz que “o nexo de causalidade ou nexo causal constitui o elemento imaterial ou virtual da responsabilidade civil, constituindo a relação de causa e efeito entre a conduta culposa ou o risco criado e o dano suportado por alguém” (Tartuce, 2019, p. 537). Ou seja, se compreende como a ponte entre a ação e a omissão e o prejuízo. Para que haja a responsabilização civil do dano afetivo, é necessário que seja comprovado o nexo de causalidade entre a conduta dos genitores e o dano afetivo que a conduta causou ao filho. Neste contexto, Paulo Lôbo diz que:
Sua natureza não patrimonial, em desacordo com a cultura jurídica ocidental de valorização do indivíduo proprietário, fez com que permanecessem à margem do direito civil. Foi preciso que se avançasse na compreensão de que sua violação deveria se enquadrar no âmbito dos danos e, fundamentalmente, dos danos não patrimoniais ou danos morais. As trajetórias dos dois institutos ficaram indissoluvelmente ligadas, com reconhecimento expresso na CF/88, que os tratou em conjunto, principalmente no inciso X do art. 5º, que assim dispõe: “X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A interação não é ocasional, mas necessária. A referência aos danos morais é abrangente dos danos existenciais, que comprometem o projeto de vida da pessoa e sua vida em relação, de modo permanente. (Lôbo, 2021, p. 60).
Baseado no exposto, no abandono afetivo a conduta omissiva ou comissiva dos genitores em relação ao dever jurídico imposto para com o filho gera o ato ilícito e o trauma psicológico resultante do ato gera danos à personalidade dos menores. Logo, temos a reparação civil como a restauração do equilíbrio da relação jurídica hipossuficientes a fim de proteger os direitos da personalidade da criança e do adolescente, enfatizando a dignidade da pessoa humana e agindo contra aqueles que negligenciam e prejudicam o desenvolvimento moral, intelectual e psicológico.
6 RESPONSABILIDADE CIVIL, UMA VISÃO DAS JURISPRUDÊNCIAS E DECISÕES JUDICIAIS
O ordenamento jurídico brasileiro vem abrindo precedentes para a indenização por danos causados em virtude da negligência afetiva. Porém, há de se considerar, ainda, que a responsabilização por dano afetivo é matéria relativamente nova nos tribunais e poucas doutrinas são encontradas neste sentido. Portanto, é imprescindível observar quais são os comportamentos jurisprudenciais em relação ao assunto em tela.
Dada a importância das decisões judiciais e do amparo legal na proteção ao direito das crianças e da instituição familiar, é imperioso abordar o precedente preambular no tocante ao abandono afetivo no Brasil. O caso refere-se ao Recurso Especial, destinado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja relatoria incumbiu à Eminente Ministra Nancy Andrighi, que reconheceu a possibilidade da compensação por abandono afetivo, conforme é possível observar na emenda do Acórdão 1159242 SP 2009/0193701-9 sobre a demanda:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar⁄compensar no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF⁄88. (Brasil, 2012)
A decisão favorável à indenização nos casos de abandono afetivo tem como fonte, não apenas os sentimentos ou tão somente o princípio da afetividade. Envolve fatores muito mais complexos, como por exemplo, o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, do planejamento familiar consonante com a paternidade responsável, conforme se observa na continuação do Acordão:
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
[…]
7. Recurso especial parcialmente provido. (Brasil, 2012)
A Ministra, em sua célebre frase: “amar é faculdade, cuidar é dever”, foi firme no entendimento de que não se está discutindo a obrigatoriedade do afeto, mas o dever de cuidado para com a sua prole, demonstrando, assim, que a ausência do cuidado, a falta do cumprimento do dever, garantidos constitucionalmente, para com a criação, educação e zelo para com os filhos implica em consequente dever de indenizar, ou seja, acarreta responsabilidade civil, como meio para resguardar a integridade da criança em uma tentativa de minimizar os danos ocasionados. Neste sentido, cabe aqui observar tais palavras:
Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica. por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal (Brasil, 2012, grifos do autor).
Ademais, é importante compreender que, por se tratar de questões tão íntimas, é imprescindível que se analise as singularidades de cada relação familiar, posto que os deveres parentais mínimos devem ser respeitados por ambos os genitores, sendo a responsabilização pela negligência cabível a ambos, haja vista o conjunto protetivo legal da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Neste contexto, no ano de 2015, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina julgou procedente a Apelação Cível 20150675188 Lages 2015.067518-8, referente ao abandono afetivo proveniente de uma mãe em relação aos seus quatro filhos. Deste modo, a ementa que se correlaciona abaixo expõe fatores que possibilitaram a constatação do abandono da genitora para com os infantes.
INFÂNCIA E JUVENTUDE. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. CAUSA JULGADA PROCEDENTE. ALCOOLISMO. EMBRIAGUEZ REITERADA DA MÃE E DA FAMÍLIA EXTENSA. DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NÃO CUMPRIMENTO. APLICAÇÃO DO ART. 22 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ABANDONO AFETIVO E MATERIAL COMPROVADO NOS AUTOS. SITUAÇÃO DE GRAVE RISCO VERIFICADA. INCIDÊNCIA DO ART. 1.638 DO CÓDIGO CIVIL. PERDA DO PODER FAMILIAR CONFIRMADA. PRESSUPOSTOS DEMONSTRADOS. Ante à demonstração do descaso e abandono afetivo e material por parte da genitora em relação aos quatro filhos menores, já com reflexos negativos no comportamento e personalidade destes, a destituição do poder familiar é medida que se impõe, a teor do que dispõe o art. 1.638 do Código Civil e art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente. […] RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESTA, NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA NA ÍNTEGRA. (Brasil, 2015).
No caso em tela, a mãe, diante das provas acostadas aos autos com relação aos seus vícios, e de como esta situação causava sérios riscos aos menores em questão, o poder judiciário determinou a perda do poder familiar em decorrência ao abandono afetivo praticado com os filhos. Já em outro caso, o filho pleiteou indenização por danos morais em face de seus pais, em conjunto, pelo abandono afetivo sofrido. A terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou, em 2021, o Recurso Especial 1887697 RJ 2019/0290679-8, onde afirma-se que a assistência material e a proteção à integridade do filho constituem obrigação legal, constatando que houve, efetivamente, violação do dever de cuidado. Conforme é possível depreender da Emenda do caso em tela:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL. APLICAÇÃO DAS REGRAS DE RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES. OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS E PERDA DO PODER FAMILIAR. DEVER DE ASSISTÊNCIA MATERIAL E PROTEÇÃO À INTEGRIDADE DA CRIANÇA QUE NÃO EXCLUEM A POSSIBILIDADE DA REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS. PRESSUPOSTOS. AÇÃO OU OMISSÃO RELEVANTE QUE REPRESENTE VIOLAÇÃO AO DEVER DE CUIDADO. EXISTÊNCIA DO DANO MATERIAL OU MORAL. NEXO DE CAUSALIDADE. REQUISITOS PREENCHIDOS NA HIPÓTESE. CONDENAÇÃO A REPARAR DANOS MORAIS. CUSTEIO DE SESSÕES DE PSICOTERAPIA. DANO MATERIAL OBJETO DE TRANSAÇÃO NA AÇÃO DE ALIMENTOS. INVIABILIDADE DA DISCUSSÃO NESTA AÇÃO. (Brasil, 2021).
A Ministra Nancy Andrighi, na função de relatora, menciona a despeito dos danos resultantes da responsabilização civil, evidenciando que esta não se confunde com a prestação de alimentos ou perda do poder familiar, uma vez que estas possuem fundamentos jurídicos próprios. Por esta razão, é importante se analisar a continuação da emenda:
5 – O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho. (Brasil, 2021, grifo do autor)
Assim, alcança-se o entendimento de que, para proteção do interesse da criança e do adolescente, é necessário não apenas a mera prestação alimentar, mas incumbe-se aos pais o dever de constituir referências e vínculo familiar a fim de garantir um pleno desenvolvimento dos filhos, seja ele material e moral.
Por fim, mas não menos importante, há entendimento da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba, a respeito do abandono afetivo decorrente da omissão do pai ou da mãe no dever de cuidar dos filhos, constituindo elemento suficiente para caracterização do dano moral. A Apelação Cível de número 0000259-12.2014.8.15.0551 julgada no ano de 2018 pelo Tribunal de Justiça da Paraíba, sob a Relatoria do Desembargador Leandro Santos, reconhece o preenchimento dos requisitos de direito ao recebimento da indenização.
Contudo, o TJ-PB decidiu pelo não provimento da ação, tendo em vista já haver ocorrido a prescrição do direito, com base no artigo 487, II, do Código de Processo Civil, seguindo as diretrizes do artigo 206, §3º, V do Código Civil, que estipula o prazo prescricional trienal, ou seja, gera a perda do direito de pretensão à ação de cunho indenizatório pelo titular, que permaneceu inerte da maioridade legal até o prazo preestabelecido de três anos. Entende-se, portanto, que o prazo confim para pretensão, seja aos 21 (vinte e um) anos de idade. Contudo, não há uma uniformidade na jurisprudência sobre este quesito. Porém, sua adoção visa evitar uma busca eterna por justiça e um tráfego infinito de demandas por dano moral/imaterial.
Em face do exposto, depreende-se que se trata de um direito subjetivo que envolve vários tipos de família. Logo, cada caso deve ser analisado em suas particularidades. Com base em Maria Berenice Dias, “não se trata de atribuir um valor ao amor, mas reconhecer que o afeto é um bem que tem valor” (Diniz, 2015, p. 165). Assim, a jurisprudência encontra-se voltada à aplicação da reparação civil em casos de abandono afetivo, por meio de indenização, visando o viés pedagógico.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho constatou que a configuração familiar passou por uma grande evolução e que a família tradicional foi se transformando e se moldando ao longo dos anos, alterando a concepção da formação da instituição familiar, que passou de um modelo patriarcal, oriundo unicamente pelo vínculo matrimonial, para se pautar nas relações de afeto das conjunturas familiares contemporâneas.
Caracterizando, assim, a unidade familiar como o espaço mais dinâmico para a existência da pessoa humana e da integração social, sendo um elemento de extrema importância para o futuro. Posto que um ambiente familiar saudável e emocionalmente estruturado, estabelece o local onde as crianças e os adolescentes adquirem seus princípios, valores e senso de moralidade, o que resulta na determinação do princípio da afetividade como um valor jurídico presente nessas relações familiares. Com base nas normas e leis atuais, que permitem assegurar direitos e deveres aos pais e as novas configurações familiares, é possível analisar o abandono afetivo infantil e seus impactos na vida e desenvolvimento dos infantes, problema central desta pesquisa.
No que tange ao abandono afetivo – uma realidade social tão habitual nas famílias brasileiras – a discussão da reparação civil não pretende exigir o afeto entre as partes. Visa apenas garantir o direito constitucionalmente ao desenvolvimento sadio, ou seja, não é o dever de amor, mas a obrigação de criar de forma plena ao passo que a figura de pais que apenas exercem a obrigação do sustento material para com seus filhos é uma realidade comumente normalizada em nossa sociedade, principalmente em decorrência do cenário de uma eventual separação conjugal.
Nesta ordem de ideias, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça vem se manifestando sobre esta questão. No ano de 2012, houve o marco da condenação do pai ao pagamento de indenização por abandono afetivo ao filho, como um meio de proteção e reparação ao dano gerado, primando o dever constitucionalmente imposto ao Estado de proteger crianças e adolescentes e de propiciar um ambiente que lhes garanta um pleno desenvolvimento físico, emocional e psicológico.
O presente trabalho buscou, através de análise jurisprudencial, demonstrar a possibilidade de se decidir com base em fundamentos doutrinários e legais pelo dever de indenizar casos de abandono afetivo paterno-filial. De modo que faz-se necessário o reconhecimento da limitação do ordenamento jurídico em não delimitar todas as minúcias da vida cotidiana, e que ao analisar o caso concreto, seja dada a este uma solução que represente a efetividade da proteção jurídica destinada ao detentor do direito, em consonância com as normas jurídicas inerentes ao caso.
O Judiciário encontra-se diante de um grande desafio, uma vez que para cada caso concreto deve-se analisar as peculiaridades em si, ou seja, as situações inerentes às relações interpessoais e aos cuidados necessários para a garantia de pleno desenvolvimento dos menores, pois, além das penalidades já previstas expressamente no Código Civil, como por exemplo a suspensão do Poder Familiar, urge a configuração do abandono afetivo como ato ilícito passível de indenização moral e psicológica, como uma forma de indenização ao prejuízo causado na dignidade dos filhos rejeitados.
Por fim, para que se efetive, de fato, as indenizações por abandono afetivo como medida reparatória, se fazem necessárias a compreensão e a valorização da instituição familiar como pilar fundamental da sociedade, bem como que se estabeleçam leis que efetivem o direito de ação, como o anteriormente conhecido Projeto de Lei do Senado nº 700/2007, atualmente PL 3212/2015, em tramitação, cuja finalidade é a modificação e aprimoramento da Lei nº8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente, visando regular o assunto, considerando o abandono afetivo como ato ilícito, civil e penal, passível de indenização pecuniária.
REFERÊNCIAS
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[1] Bacharela em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.